‘Vigiando um leão de perto’: A poesia narrativa em ‘Acrobata’, novo livro de Alice Sant’Anna

A voz poética em “Acrobata”, novo livro de Alice Sant’Anna é uma voz nervosa, para não dizer ansiosa. Está sempre pensando no futuro, nos medos.

A poeta fluminense Alice Sant’Anna. Foto: Renato Parada (Quatro Cinco Um – Reprodução).

Tenho lido, comentado e conversado muito sobre poesia ultimamente, o que pra mim significa o convívio com uma série de estranhamentos. Ao contrário da prosa, a poesia nos desafia muito, fazendo parecer que mesmo leitores de longa experiência não estão preparados para ela. A linguagem poética sobrevive desse assombro perante o texto.

No entanto, é um prazer imenso. Aos poucos vou reconhecendo o que gosto mais ou não gosto na poesia. Percebi que tenho uma preferência pelo lírico de Ferreira Gullar, em que cada palavra sonoriza de forma deliciosa na ponta da língua ao pronunciada. Coisa semelhante encontro ao ler Lívia Natália e Juliana Krapp. 

A poesia narrativa, que tem uma tradição muito forte no Brasil (seu principal poeta, Drummond, desenvolveu como ninguém a arte de narrar em versos), demorou a chegar em mim. Alice Sant’Anna, poeta fluminense, reúne em “Acrobata” (Companhia das Letras, 2024) poemas narrativos. Sobre eles, iremos falar agora. 

O que teme a poeta?

Penso que a poesia narrativa consegue funcionar quando o poeta em questão tem um olhar acurado para a realidade em que vive, o que funcionou para Drummond e Adélia Prado. Esses poetas são constantemente apresentados como poetas que conseguem enxergar, na mesmice do cotidiano, o traço da beleza, a magia presente em todas as coisas.

Alice Sant’Anna herda esse olhar de assombro (para citar Adélia) para o mundo em que vive. Não faz isso, entretanto, copiando os dois poetas citados, embora sejam uma referência que se apresenta claramente no poema. O seu olhar é próprio e marcado por um misto de sentimentos inquietantes.

A voz poética em “Acrobata” é uma voz nervosa, para não dizer ansiosa. Está sempre pensando no futuro, nos medos. Se o olhar em Adélia é um assombro que assusta pelo encantamento, em “Acrobata” é o medo em pura natura. Nesse sentido, é uma poesia muito honesta, o que a torna ainda mais comovente. 

O tema da maternidade é recorrente e talvez o que mais demonstra essa honestidade a que me refiro. As mães, quase sempre representadas pela coragem de enfrentar a vida e lutar pelos seus filhos, aparecem no livro de Sant’Anna como pessoas passivas de sentir medo. 

a um filho não se deve
ensinar a não ter medo
a um filho se deve ensinar
a ter os medos certos
(Trecho do poema “De volta à praça”, de Alice Sant’Anna).

a gravidez é um segredo mal guardado
o umbigo pulando para fora no vestido
e os pés que já não cabem em sapato nenhum
arrumar as roupas do bebê no armário
e mesmo dar um nome a ele
tudo parecia um pouco apressado
como comemorar a vitória antes da hora
(Trecho do poema “Carimbo”, de Alice Sant’Anna).

É preciso ter muita coragem para escrever poemas como esse, sobretudo num mundo em que mulheres-mães não são convidadas a serem sinceras sobre a maternidade. Na entrelinha do poema, está o amor transbordante que se manifesta no medo da perda. Mas também o medo que verte em coragem no exercício do amor. 

Poesia em movimento

Outros temas vão transitar na obra de Sant’Anna, como o luto, a arte e a família. Com a suavidade necessária, a poeta desenha cenas de internação e doença do avô, a perda de um amigo e a passagem do tempo. Trata-se de uma maneira quase reflexiva de observar a paisagem que se movimenta.

Daí entra também o título, “Acrobata”, que é um ótimo título. A movimentação da vida, em sua flexibilidade tamanha, é anotada pela poeta que tem interesse quase sociológico em reconhecer, nas dobras da vida, o segredo nunca contado. Entre algumas perguntas feitas pela voz poética, estão:

O que pensa um atleta de salto ornamental antes de pular?

O que sentia Marie Curie ao carregar, nos bolsos do vestido, as amostras de rádio responsáveis por matá-la? 

O que sente a mãe sabiá que cuida de seus filhotes?

É melhor afugentar um leão ou aprender a vigiá-lo bem de perto?

A indiferença da vida perante às observações da poeta é inquietante, mas nem por isso deixa de observar. Faz-se um punhado de tópicos, descrições, mas nunca conclusões sobre o que se observa da vida. Pois o que importa, mesmo, é observar. 

Em “Acrobata”, não há uma escolha de palavras que consigam gerar ambiguidade. Alice Sant’Anna dispensa qualquer subterfúgio na hora de escrever o que precisa ser escrito. Não há uma preocupação explícita com o balanço, o ritmo e nem com a abertura de significados diante de uma palavra que diz tudo e nada ao mesmo tempo.

Se diz, se escreve, o que se quer dizer e escrever. As palavras são as mesmas que encontramos em conversas corriqueiras. Isso não significa que não há requinte. Pelo contrário! Fazer um trabalho desses, do fluir de palavras que brotam da alma, é coisa para poucos. 

Leia Também: A escrevivência de Jeferson Tenório em “De onde eles vêm”

‘Acrobata’ – Novo livro de Alice Sant’Anna

Acrobata, de Alice Sant’Anna.
Companhia das Letras, 2024.
Poesia, 88pp.
R$ 69,90.

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