Um novo-antigo mito: resenha de ‘O beijo de Narciso’, de Fersen

O mito clássico é revisitado em O beijo de Narciso (Ercolano Editora, 2023), em que Milès, um “efebo” no auge de seus 15 anos, descobre o lado negativo de suas qualidades físicas em meio a uma sequência de acontecimentos trágicos, aos moldes das histórias gregas.

O escritor Jacques Fersen, autor de ‘O Beijo de Narciso’/ Foto: Reprodução.

Há um lugar comum na cultura popular segundo o qual a beleza vem com um alto custo. No mito de Narciso, um jovem desperta o amor de homens e mulheres e é amaldiçoado a admirar suas próprias feições em um lago, o que leva-o à morte, afogando-se ao tentar alcançar seu reflexo, após apaixonar-se imediatamente consigo mesmo. O mito é revisitado em O beijo de Narciso (Ercolano Editora, 2023), em que Milès, um “efebo” no auge de seus 15 anos, descobre o lado negativo de suas qualidades físicas em meio a uma sequência de acontecimentos trágicos, aos moldes das histórias gregas. Não somente o novo Narciso apresenta as características do primeiro, como também revive o mito de Adônis, menos conhecido, mas igualmente marcante ao abordar uma beleza que encanta, porém, pouco perdura.

Jacques Fersen, autor do livro, foi um aristocrata francês com origens nobres que, por sua grande herança, chamou a atenção de diversos pretendentes. Frustrados foram os desejos daquelas mulheres pois, a despeito de suas investidas, Conde Fersen apresentava comportamentos ditos imorais àquela época, tendo sido posteriormente expulso do país pelas festas que organizava envolvendo rapazes jovens, estudantes das melhores escolas de sua região.

A ficção foi publicada em 1907, dois anos após Missas Negras (também editada no Brasil pela Ercolano), em que o autor aborda suas acusações, entre criação ficcional e relato real. Trata-se de uma espécie de homenagem à paixonite que nutria por um jovem romano, cuja beleza não somente conquistou o coração de Fersen como serviu-lhe de inspiração. Uma estátua retratando-o em sua nudez foi depositada em Villa Lysis (o refúgio projetado por Fersen em Capri, Itália, onde passou seu exílio voluntário após os escândalos que culminaram em sua expulsão da França) até ser substituída por uma outra, e o jovem também teria posado em trajes de inspiração greco-romana, dando a ver sua beleza física, por ordem do Conde. Estas imagens, aliás, ilustram o livro, sendo a primeira usada para ilustrar a capa da obra. Aliás, a imersão imagética da edição parece compor de forma preciosa a história, ainda que as fotografias não tenham sido produzidas originalmente para este fim. Observar a beleza do muso de Fersen, de seu palacete e das estátuas que o aproximam ainda mais dos ideais gregos, auxiliam na imersão neste universo de dores e encantos.

A ambientação descrita também mostra-se crucial, sendo que Biblos, cidade em que nasce Milès, parece inspirada na própria Villa Lysis. A narrativa, fortemente descritiva, amplia seu apelo sensível, como se buscasse provocar um êxtase sinestésico. Se por um lado, somos encobertos pelas imagens, formas, odores e sabores, os acontecimentos em si levam algum tempo para se desenrolarem. Tal característica, no entanto, mostra-se positiva, pois tal imersão lenta mostra-se como uma parte inseparável da história, que possivelmente perderia parte significativa de seu apelo erótico/ sensível caso se resumisse no arco de puberdade de Milès, tão deslocado do que hoje concebemos como o amadurecimento, mas tão pertencente a seu universo de inspiração clássica.

Filho de Lidda, uma escrava liberta com seu senhor, o protagonista logo desperta a compaixão do pai, Elul, que, observando-o em seus anos iniciais, imagina seu destino, não um guerreiro ou atleta, mas um sacerdote, dedicando sua beleza ao templo de adoração a Adônis, cuja localização e descrição, um local de frente ao mar, lembram novamente o retiro de Fersen. Ali, o jovem presencia e posteriormente protagoniza rituais de adoração, que vão do sacrifício das carnes juvenis de um sacerdote ao ato de despir-se sob a luz do sol, frente aos demais adoradores do templo, como encarnação da própria divindade. As demais mortes que ocorrem, motivadas pela frustração de várias personagens, entre elas um amante, companheiro no templo, ao darem-se conta que não poderão possuir Milès apenas para si, também carregam ares de sacrifício devido a sua teatralidade e a proximidade do jovem com Adônis.

Por fim, é a própria mortalidade que parece ser o tema da história de Milès, que, após tentativas de fuga, romances que nunca se consumam, e um encontro com um outro rapaz que, embora pareça tratar-se de um possível sucessor de seu “legado” maldito, parece simbolizar um encontrar-se com o próprio reflexo, encerra sua trajetória precocemente, como nos mitos que o precedem também este fim carregado de simbologia e… beleza.

Destaco a edição e o projeto da editora Ercolano, que vem buscando circular entre o público leitor brasileiro livros que, de outra forma, dificilmente ganhariam a atenção mais que bem-vinda de autores pouco conhecidos como Fersen, cuja obra, queer, naquilo que o termo guarda de melhor — extravagância, irreverência, excentricidade — encontra agora novo público em língua portuguesa, após sua publicação original na imprensa disruptiva no começo do século XX.

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