Em Proclamem nas Montanhas, Baldwin evidencia que ambos, sagrado e profano, são coexistentes na história das personagens e que a religiosidade, além de fornecer força e fé, pode tolher uma existência baseada em medo e ignorância.
James Baldwin, nascido em Nova Iorque, Estados Unidos, em 1924, destaca-se como um dos maiores escritores do século XX, retratando a realidade da comunidade negra em seu país e abordando a discussão de raça com religiosidade, gênero, sexualidade e classe. Seu primeiro livro publicado, Proclamem nas Montanhas (Go Tell It On the Mountain), 1952, ganha sua primeira tradução e publicação no Brasil em 2025 pela TAG Livros. A tradução é de Paulo Henriques Britto, conhecido pelo excelente trabalho ao traduzir Elizabeth Bishop, Allen Ginsberg, Ted Hughes, Wallace Stevens e Lord Byron.
Baldwin, frente às dificuldades encontradas e perseguições durante a luta pelos direitos civis nos E.U.A nas décadas de 1950 e 1960, expatriou-se e viveu a maior parte da sua vida adulta na França. Pôde então observar e refletir sobre sua própria história e o continente Americano à distância e escrever dentro do que mais tarde seria chamado de interseccionalidade.
Proclamem nas Montanhas é situado do fim do século XIX ao início do século XX, primeiro no sul dos Estados Unidos e, então, no Harlem, em Nova Iorque. Para melhor compreender este momento é necessário revisitar a história dos escravizados trazidos para o país e também a Guerra Civil Norte-Americana. A seguir, uma breve linha do tempo.
Escravidão e Guerra Civil
É considerado que a escravidão começou no século XVII nos E.U.A. quando 20 cativos escravizados africanos foram carregados de navios portugueses para Jamestown, estado da Virginia, em agosto de 1619. Desde este momento, foram 185 anos até o primeiro estado do norte país declarar a abolição da escravatura, começando por Nova Jersey em 1804, Nova Iorque em 1827, Connecticut em 1848 e Nova Hampshire em 1857.
A Guerra Civil desponta entre os estados do norte e do sul entre 1861 e 1865. O motivo central: a escravidão. Ou, a grande disparidade entre as realidades dentro do país: um norte maioritariamente urbano e rumo ao industrial e um sul agrícola. O norte, mais voltado ao Partido Republicano e o sul, ao Democrata, divergiam em práticas econômicas, religiosas, educacionais e culturais. A hegemonia branca agrícola sulista visava manter a prática escravocrata baseada em disparates bíblicos e religiosos. Foram mais de 600 mil mortos durante os anos de guerra, culminando na Décima Terceira Emenda à Constituição que vem abolir a escravidão.
Do Sul ao Harlem
Ao fim da Guerra Civil, o sonho dos afro-americanos por uma vida como cidadãos estadunidenses integrais foi decepado quando nos anos 1970 a supremacia branca iniciou a Reconstrução do Sul, com leis de segragação racial, que impediu a maioria dos negros de tornarem-se donos de terras e excluía-os à pobreza e servitude. Grupos como a Ku Klux Klan (KKK) também dominaram a cena de terrorismo, torturas e linchamentos, esvaziando os afro-americanos de seus direitos civis e humanos.
No norte e meio-oeste o crescimento econômico e industrial atraía cada vez mais moradores. Assim, no Harlem, Nova Iorque, e para outras cidades, como Chicago, Los Angeles, Detroit e Philadelphia, na virada do século XX, começou uma imigração em massa dos moradores do sul que buscavam melhores perspectivas e oportunidades, fugindo dos horrores segregatórios e violentos. E foi entre o fim da Primeira Guerra Mundial e a metade da década de 1930 que a Renascença do Harlem aconteceu, com grande produção artística, cultural, política e intelectual. Neste contexto, James Baldwin é parte vital da Renascença do Harlem e traz à tona toda a história, do sul ao norte, de seus antepassados e história pessoal em seus escritos.
Proclamem nas Montanhas: O Sagrado e o Profano
John é nosso personagem central, criado sob forte vigilância e rigorosidade religiosa no Harlem. Desde muito novo John é diferente, não se atrai pela vida na rua como os outros garotos e vai muito bem na escola. Apesar de servir a igreja frequentada por seus pais, não se entrega à crença. Baldwin constrói neste romance uma história entrelaçada com a fé e religião cristã em igrejas frequentadas por negros apenas, fazendo muitas menções a canções e trechos da Bíblia. O pecado e a danação eterna é constantemente imposta como fator que guia os atos dos personagens que temem a Deus. John, neste meio, descobre-se um grande pecador ao entender sua sexualidade, é um menino homossexual de 14 anos que fantasia com outros meninos, embora não chegue a consumar ato sexual.
Revoltante como um processo de auto-descoberta tão pessoal pode tornar-se um fardo. Baldwin dá seu testemunho, que possivelmente traz de sua própria vivência:
John caíra em pecado. Apesar dos santos, da mãe e do pai, dos alertas que havia recebido desde muito cedo, ele, com as próprias mãos, caíra em pecado, um pecado que era difícil de perdoar. No banheiro do colégio, sozinho, pensando nos garotos – maiores, mais velhos e corajosos – que apostavam quem era capaz de urinar mais alto, John testemunhara em si mesmo uma transformação sobre a qual jamais ousaria falar.
Trecho de “Proclamem nas Montanhas”, de James Baldwin (Edição da TAG, p. 21)
A história do sul dos Estados Unidos é contada através dos personagens e seus flashbacks: Beatriz, a mãe de John; Gabriel, o padrasto; e Florence, a tia de John. Os pais destes personagens eram cativos escravizados e puderam vivenciar a transição para a abolição. Já estes personagens foram os que vivenciaram a segregação e a perseguição dos grupos brancos supremacistas. Em algum ponto da narrativa, mudam-se para Nova Iorque. Entretanto, o narrador pontua:
No final das contas, o mundo do Norte não era assim tão diferente do mundo do Sul de que [Elizabeth] fugira; a única diferença era que o Norte prometia mais. E a semelhança era que o prometido não era dado, e o que era dado com uma mão distante e relutante era tirado de volta com a outra.
Trecho de “Proclamem nas Montanhas”, de James Baldwin (Edição da TAG, p. 199).
Beatriz engravida sem ter casado com o amor a quem seguiu até o norte, Richard, homem este que não se dava a religiosidades e era adepto a jogos e álcool. Estes fatores são abordados no romance como terreno pecaminoso. Após Beatriz engravidar, Richard tira a própria vida, deixando-a sozinha e derrotada. Até que conhece Gabriel.
Gabriel é o irmão de Florence, colega de trabalho de Beatriz. Quando ainda no sul, Gabriel era o verdadeiro boêmio: álcool, jogo e prostitutas. Até que se converte à religiosidade e arrepende-se desta sua vida e começa a pregar. Casa-se com Deborah, porém em dado momento envolve-se com Esther e tem um caso, o que a engravida e a faz fugir para o norte. Este é um dos momentos que culminam na discussão entre a oscilação da vida sagrada e profana de Gabriel, segundo sua própria religião. Um pregador e o adultério. Esther falece dando à luz e seu filho volta ao sul, porém sem nunca ser reconhecido pelo pai.
A religiosidade, tema constante neste romance, mostra-se como fonte de força para uma comunidade que sofre com um recém quebra da escravidão mas que nunca foram totalmente inseridos na sociedade. Têm fé que conseguirão manter a família alimentada e segura, longe dos perigos representados pelos brancos, assim como têm fé que poderão estar longe dos perigos da carne como o sexo, o álcool e o crime. Embora tentem viver no caminho do sagrado, é evidente que o profano permeia suas vidas. Gabriel luta para esquecer seu passado pecador e ao mesmo tempo é um pai e marido violento. Beatriz é uma esposa e dona de casa que também luta contra seu passado e com a realidade de um filho bastardo. E, finalmente, John, um garoto gay que está crescendo em meio a tanto preconceito e desinformação, justificados pela fé.
Em Proclamem nas Montanhas, Baldwin evidencia que ambos, sagrado e profano, são coexistentes na história das personagens e que a religiosidade, além de fornecer força e fé, pode tolher uma existência baseada em medo e ignorância. O romance é dito ser semi-autobiográfico. Assim, podemos ter uma visão dos percalços enfrentados por Baldwin, em relação a sua sexualidade, raça, classe e religião, em uma comunidade conservadora no início do século XX. A busca por uma vida melhor no norte, por uma família que traga segurança e afeto, por uma sociedade e política que garanta direitos humanos e civis aos cidadãos estadunidenses – recorrentes nos sentimentos de esperança e desespero destes personagens.
Como um escritor gay, de ascendência libanesa, criado no sul do Brasil em cidades de maioria branca e de fervor religioso, me identifico com a culpa e deslocamento por não me encaixar no padrão de raça, sexualidade e religião. Por muito tempo tive pensamentos como os de John, o que devastou minha alma e coração e me fez buscar por fugas que quase destruíram meu corpo. E são relatos como os de Baldwin que me fazem inteiros novamente, assim como os que lutaram e lutam por direitos humanos e civis em todas as partes do planeta. Pelas pessoas LGBTQIAPN+ que lutam com arte e resistência, ao escancarar suas dores, sempre interseccionais, que permeiam suas identidades através de vivências pela raça, credo, classe, sexualidade, gênero, idade, necessidade e deficiência.
Cada palavra deste livro é um golpe na mente e na alma, seja por culpa ou autoperdão, e também esperança, pois é através da expressão que posso inspirar-me e desbloquear minha própria realidade com honestidade e coragem.
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Proclamem nas Montanhas, de James Baldwin
Tradução de Paulo Henriques Brito
Companhia das Letras, 2025 (Edição Tag Curadoria)
Romance
271p
Nossa!
Que resumo ótimo sobre a escravidão e Guerra Civil dos EUA.
Li somente uma vez o Baldwin. Contudo, esse parece ser mais interessante pela “suposta” biografia dele no personagem John.