Em “O Quarto ao Lado”, Pedro comprova que seu talento para o cinema não é fruto de um formato rígido. Ele sabe manejar qualquer instrumento para fazer um drama tocante, podendo se transformar diversas vezes para surpreender o espectador.
A experiência de assistir a una película de Pedro Almodóvar é sempre surpreendente, embora também tenha sido, durante muito tempo, um lugar conhecido para a maioria de nós. A surpresa em Almodóvar, fator importantíssimo para a construção da narrativa apresentada pelo diretor que, como ninguém, sabe criar peripécias, é elaborada por meio da tensão que nasce já no início do filme. Sabemos, sempre, que há algo a acontecer, embora não saibamos exatamente o quê, tampouco quando. Geralmente, Pedro utiliza as soluções mais absurdas e inverossímeis possíveis em uma ato final de dramaticidade extrema que lembra o texto teatral. É emocionante, é o mundo nascendo e findando.
Acontece que quem for espectador apaixonado como eu, consegue reconhecer, na própria trama, elementos tipicamente Aldomóvarianos. As “cores de Almodóvar”, cantadas por Adriana Calcanhotto, mas não apenas isso, a dubiedade quanto ao gênero, o desejo carnal que se sobressai, a nudez natural que encanta tal qual uma escultura renascentista, as travestis, a ironia sagaz são alguns dos elementos que esperamos encontrar nas obras de Pedro que, ao longo dos últimos anos, têm subvertido a lógica criada por ele mesmo.
Ao assistir “Dolor y Gloria”, soube que algo havia mudado. A melancolia já se sobressaía num longa que é mais introspectivo, menos falado, mais aberto às interpretações discordantes. Mas há muitos lugares comuns também. A presença da música, o desejo ardente, a discussão a respeito da arte e seu papel no mundo.
Um Convite Irrecusável
Em “O quarto ao lado”, é um tanto difícil encontrar, à primeira vista, elementos tipicamente Almodóvarianos. Seu primeiro longa em inglês é marcado pela ausência das cores quentes que sempre reconhecemos em seus filmes. Ao invés disso, o que encontramos são as cores frias do outono no hemisfério norte: o verde-musgo, o azul-acinzentado. É proposital uma vez que é a narrativa de Almodóvar que mais se propõe a refletir sobre a morte, sobre a solidão e sobre a fragilidade humana ante a soberania do envelhecimento e da doença.
O filme é uma adaptação de um romance de Sigrid Nunez “What we are going through” (que ainda não tem tradução para o Brasil, como assim!) e nos apresenta a personagem Ingrid, interpretada brilhantemente por Julianne Moore. Trata-se de uma escritora que acaba de lançar um livro sobre a morte, algo que ela mesma considera como algo não-natural e incompreensível para a sua natureza. Ingrid tem medo de morrer e busca por maneiras de superar esse medo ao mesmo tempo em que foge do confronto com a morte.
Como o Destino com D maiúsculo faz questão de nos aproximar de nossos abismos, ela acaba por reencontrar sua antiga amiga Martha, interpretada por Tilda Swinton, que é uma jornalista correspondente de guerra e que está enfrentando um câncer severo. O reencontro acende, desde o primeiro momento, a certeza em ambas que a vida delas estariam atravessadas para sempre. Cansada de viver uma vida de medicações e hospitais, Martha quer encerrar sua trajetória de forma digna, mas não quer fazer isso sozinha. O convite é feito a Ingrid, que viaje com Martha para a floresta, em uma casa luxuosa na qual Martha deverá viver seus últimos dias. Em algum momento que Ingrid não saberá, Martha irá engolir uma pílula de eutanásia e se despedir da vida.
O convite de estar “no quarto ao lado” enquanto sua amiga morre é o suficiente para fazer cair o mundo de Ingrid que se vê ao mesmo tempo sem escapatórias. A personagem sabe que esse é um momento decisivo em sua vida, que estar ali ao lado de Martha é mais que fazer um favor macabro à sua amiga, é conhecer e entregar-se ao seu medo mais pungente. Por mais que ela tenha dito não várias vezes, o convite sempre foi irrecusável.
Cores de Almodóvar em pleno outono
Certamente é muito fácil se apaixonar por Tilda Swinton na personagem Martha, uma personagem que mesmo em vias de atravessar os portais que separam a vida e a morte, transborda em seu olhar cálido o desejo pela vida, o desejo pela arte. Martha quer passar o tempo que lhe resta sem pensar na morte, mas pensando nos livros, nos filmes, quer se entregar à vida e o modo como decide morrer diz isso. Não é uma recusa à vida, é uma recusa ao sofrimento que a desumanizou, que roubou dela o que há de mais precioso que é o domínio de si.
Mas é Julianne Moore que, para mim, faz o filme ser um filme incrível. Ao dizer pouquíssimo, ela consegue demonstrar a inquietação perante os signos da morte que ao mesmo tempo são insuportáveis e atraentes para ela. Ingrid representa uma luta tão humana que é a luta pelo desejo de ignorar nossa finitude. Julianne Moore me encantou. O fim do filme, quando, sem música, ela recita o final de “Os Mortos”, de James Joyce, enquanto cai a neve é simplesmente transbordante.
Em “O Quarto ao Lado”, Pedro comprova que seu talento para o cinema não é fruto de um formato rígido. Ele sabe manejar qualquer instrumento para fazer um drama tocante, podendo se transformar diversas vezes para surpreender o espectador. Se por um lado, abrir mão da língua castelhana (quente, dramática), pelo inglês (frio, sóbrio) o faz perder muito de elementos típicos de sua obra, por outro é uma porta aberta em explorar não apenas o drama, mas a solidão. Para isso, o diretor usa bastante do silêncio, do entredito, dos olhares. Nada de choros explosivos neste Almodóvar! É o momento de ouvir o pranto quieto de quem sabe que se trava uma luta cujo final já foi dito.
Por fim, este último parágrafo tem um spoiler. Quando Martha veste o blazer amarelo e passa o batom vermelho para encerrar a sua vida, eu consigo saber que, por detrás de toda esse sereno, existe, no âmago do filme, a vida pulsante que resiste até mesmo à morte cruel. São as cores de Almodóvar em pleno outono.
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