Conviver com a desumanidade sem o refrigério da arte parece tarefa impossível. Sem o alívio de uma realidade inventada, transformada e humanizada através de tintas, palavras, argila, notas musicais e outros meios de criar, sucumbiríamos no abismo da desilusão, na descrença no universo e em nós mesmos.
No pequeno conto intitulado “O poeta”, Oscar Wilde conta a história de um poeta que morava no campo e caminhava, todos os dias, até a cidade próxima, onde o povo ficava ao seu redor para ouvir sobre as “coisas maravilhosas” que ele havia visto nos bosques do caminho. O homem, então, contava-lhes sobre faunos, nereidas e um grande centauro a galopar sorridente, “envolvido em nuvem de pó”. Descrevia em detalhes todos os seres mágicos que encontrara em seu trajeto. Certa vez, porém, na sua caminhada, ele viu “pequeninos faunos escuros, espreitando-o dentre as folhas verdes”. Logo em seguida, nereidas “emergiram da água cristalina” de um lago e um belo centauro galopou sobre a colina. Nesse dia, quando adultos e crianças se sentaram ao seu redor para ouvir sobre “as coisas maravilhosas que vira”, o poeta lhes disse que não vira “coisa alguma” e, portanto, não havia nada a contar.
Ao encerrar o conto, Wilde afirma que, “para um poeta, a fantasia é a realidade e a realidade nada significa”. Li muitas vezes esse texto. A cada retorno nele, tenho a impressão de ingressar no bosque encantado de seu personagem e sentir sua imensa frustração quando ele vê, de fato, faunos, nereidas e um centauro. O nosso imaginário mágico não deveria nunca ser desfeito pelo peso da realidade, por mais bonita que ela seja. Somos eternas crianças a brincar. Necessitamos de todas essas “coisas maravilhosas” que nos chegam através da poesia e outras formas de arte. Coisas que só acessamos com nossos olhos interiores. A vida real torna-se mais tolerável quando é vista através da lupa do encantamento. Quando somos habitados por aquilo que imaginamos.
‘Não há como fugir do mundo real, dele não há escapatória’, Luciana Konradt
(Continua após a imagem)
Não há como fugir do mundo real. Dele não há escapatória possível. Está aí pleno, com suas belezas e muitas mazelas. Carregado com a força vital que constrói; mas doente de injustiças, violência, guerras, fome, desigualdade e os outros males dos quais a humanidade parece incapaz de se livrar. Alienar-se da brutalidade não faz com que ela desapareça. Ao contrário, a fortalece. Mas conviver com a desumanidade sem o refrigério da arte parece tarefa impossível. Sem o alívio de uma realidade inventada, transformada e humanizada através de tintas, palavras, argila, notas musicais e outros meios de criar, sucumbiríamos no abismo da desilusão, na descrença no universo e em nós mesmos.
Enquanto escrevo as linhas finais dessa crônica, em um exercício de imaginação, tal qual o poeta de Oscar Wilde, vejo, ao meu lado, um inquieto Nietzsche a rodopiar pela sala. A tilintar os dedos e afilar o bigode, ansioso por participar da conversa. Lembro, então, a força imagética de sua escrita, na voz de seu personagem mais conhecido, quando diz que “para saber de felicidades não há como as borboletas e as bolhas de sabão, e o que se lhes assemelhe entre os homens. Ver revolutear essas almas aladas e loucas, encantadoras e buliçosas, é o que arranca a Zaratustra lágrimas e canções. Eu só poderia crer em um Deus que soubesse dançar.”
E como o Nietzsche da minha sala é capaz de me ouvir, digo a ele que, também eu, chego às “lágrimas e canções” com borboletas e bolhas de sabão.
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