‘Estrangeiros na própria cidade’: Jorge Augusto e Geovani Martins na FLIPF discutem o direito à cidade e à palavra 

Mesa “As Cidades e o Mar” reuniu Jorge Augusto e Geovani Martins na FLIPF para discutir quem de fato tem hoje o direito à cidade, seja no Rio de Janeiro ou em Salvador.

Da esquerda para direita: o escritor Geovani Martins, o poeta Jorge Augusto e a dramaturga Mônica Santana na mesa “As Cidades e o Mar”, na FLIPF/ Foto: Ewerton Ulysses Cardoso (O Odisseu).

“Como escrever sobre uma cidade na qual nos sentimos estrangeiros?” Essa foi a pergunta do escritor e colunista da Odisseu Paulo Zan a Jorge Augusto e Geovani Martins na FLIPF. Os dois escritores foram as atrações da mesa de título “As Cidades e o Mar”, mediada pela dramaturga Mônica Santana.

De Salvador ao Rio de Janeiro

Da esquerda para direita: o escritor Geovani Martins, o poeta Jorge Augusto e a dramaturga Mônica Santana na mesa “As Cidades e o Mar”, na FLIPF/ Foto: Ewerton Ulysses Cardoso (O Odisseu).

A ideia da mesa era discutir um dos pontos de encontro na obra dos dois autores: a vivência em grandes centros urbanos que também são cidades marítimas e turísticas. A saber, o Rio de Janeiro, para Martins, e Salvador, para Augusto. 

De fato, as duas cidades compartilham características para além do simbolismo de cidades de efervescência cultural. Ambas são capitais, foram capitais do Brasil e gozam, em certa medida, de uma glória folclórica desenvolvida a partir da narração de seus autores. 

Por exemplo, é impossível pensar em Salvador sem pensar nos encantos descritos por Jorge Amado. Entretanto, a capital baiana não tem apenas encantamentos. Jorge Augusto lembrou que a polícia da Bahia é a polícia que mais mata no Brasil, mesmo sendo um estado de governo popular e “de esquerda”.

Então, chegamos a um fator muito pertinente que une Rio e Salvador: são cidades negras. Na capital fluminense, o samba é a manifestação cultural preta que se sobressai, mas é possível citar o funk também. Na Bahia, o axémusic, o samba reggae, a percussão e demais ritmos que nascem a partir da cultura de terreiro e da resistência diaspórica. 

Como essas cidades que são berço de nossa cultura afro tratam a população negra? Para os autores, existe, de fato, um “estrangeirismo”.

‘Sim, eu me sinto um estrangeiro em Salvador’, diz Jorge Augusto na FLIPF

O poeta baiano Jorge Augusto na FLIPF 2024.

A pergunta de Paulo veio quase como uma forma de finalizar a fala dos autores que já transitavam pelo tema das dificuldades de viver em grandes cidades brasileiras. Quem leu os livros de Jorge Augusto sabe que a cidade é um de seus temas centrais. 

Durante sua fala na FLIPF, o autor relembrou que em seu livro “O Mapa de Casa” (Círculo de Poemas, 2023) ele desenha a cartografia do bairro da Liberdade a partir da visão da Periferia. Para ele, a literatura contemporânea permite isso, que se pense qualquer cidade a partir da periferia.

Como exemplo desse “ponto de vista”, está a troca de nome das ruas. É que Salvador, essa grande cidade negra, ainda nomeia as suas ruas com personalidades brancas e, por vezes, nomes do Brasil Colonial. 

Para Augusto, o modo como os moradores mudam o nome das ruas, por meio de apelidos que dizem respeito à própria vivência dessas comunidades, é uma prática de resistência. É uma maneira dessas pessoas se verem e se reconhecerem em suas cidades. 

O Poeta falou como Salvador pode ser uma cidade hostil para os próprios cidadãos negros. Citou, por exemplo, como o governo ACM retirou a linha de ônibus que ligava as periferias à Praia do Porto da Barra como uma forma de delimitar quem pode e quem não pode estar numa praia turística.

Portanto, ele responde à pergunta de Mônica Santana, “Você se sente estrangeiro em Salvador?”, feita a partir da pergunta de Paulo Zan, com um sonoro: “sim, eu me sinto estrangeiro em Salvador”. 

“Eu nunca vou me sentir na minha própria casa enquanto a morte negra fazer parte do cotidiano ordinário das pessoas, enquanto eu sentir medo de passar perto do carro da polícia. Porque eu sinto! E eu não posso fingir para mim mesmo que eu não sinto. […] Então eu não posso me sentir em casa, mesmo morando na cidade mais negra do mundo fora da África. Sim, eu me sinto estrangeiro em Salvador”.

Jorge Augusto, poeta baiano, na FLIPF.

Entrando mais na pergunta feita por Paulo, Jorge Augusto falou que o seu projeto de literatura busca fazer com que pessoas negras se sintam mais em casa em Salvador:

“Escrever a partir desse lugar é escrever tentando produzir uma cidade a partir da qual nenhum negro se sinta mais fora de casa. Como? Mostrando para esse país que ele não existe sem a população negra”.

Jorge Augusto, poeta baiano, na FLIPF.

‘A minha literatura é anti urbana’, diz Geovani Martins na FLIPF

O escritor fluminense Geovani Martins na FLIPF.

Durante a mesa, o escritor Geovani Martins também falou sobre a sua relação com a cidade e como isso chega aos seus livros. Ele contou como, por conta de uma leitura mais superficial, o seu texto é quase sempre descrito como uma literatura urbana.

Bom, tanto “O Sol na Cabeça” (Companhia das Letras, 2018) quanto “Via Ápia” (Companhia das Letras, 2022) têm como plano de fundo a capital Rio de Janeiro. Entretanto, Geovani destaca que a sua obra de maneira alguma coloca a cidade numa posição de homenageada. 

Pelo contrário, se a literatura brasileira contemporânea vem questionando o conceito de nacionalidade, certamente também se questiona a cidade. Na obra de Geovani Martins, questiona-se para quem é a cidade.

“Eu gosto de pensar no conceito de centro e periferia como algo móvel. Às vezes a gente é o centro e às vezes a gente é periferia. Se a gente se encontra num lugar em que a gente está muito à vontade, a gente está no nosso centro e o mundo em volta, que não entende aquela reunião, é a periferia.”

Geovani Martins, autor de “Via Ápia”, na FLIPF.

Geovani questiona esse direito à cidade também em sua literatura ao ficcionalizar a realidade de muitos moradores do Rio e de Salvador: o desejo de ver o mar. Se por um lado, as praias dessas duas cidades são cartões postais para o mundo, são poucas as pessoas que de fato têm acesso a elas. Seus moradores pobres não são bem-vindos. Geovani conta que os meninos de sua comunidade que iam à praia quase sempre iam para vender picolé, nunca para curtir. 

Nesse contexto, ir à praia é de fato um ato de resistência, sobretudo quando essa é, apesar dos pesares, o único contato com a natureza possível, visto que é “de graça”. Segundo Geovani, seus personagens estão sempre em busca da natureza. 

“A minha literatura é anti urbana, porque os meus personagens estão sempre tentando fugir dessa cidade que os aprisiona. E essa fuga se dá por meio da natureza, como pelo mar.”

Geovani Martins, autor de “Via Ápia”, na FLIPF.

Mesa de Geovani Martins e Jorge Augusto na FLIPF também é uma possibilidade de problematizar Praia do Forte

Enquanto assistia a discussão, pensei que os autores estavam a falar de coisas que passei o dia inteiro pensando enquanto andava por Praia do Forte, no litoral norte da Bahia. O lugar é incrivelmente belo, mas também muito frio. Ou melhor, tornou-se frio. 

Passei parte de minha infância indo à Praia do Forte e essa é a primeira vez que fui depois de quase 10 anos. Foi um susto! Toda a vila está dominada por lojas de roupas de luxo, de grandes empresas de moda, além das enormes mansões e hoteis que transformaram o local em uma colônia de milionários. 

Não que antes não fosse uma cidade turística, mas antes o artesanato local, as iniciativas de preservação à natureza e a própria culinária da comunidade eram muito mais presentes. Ficou claro para mim que quem mora em Praia do Forte hoje, e não é um desses milionários, parece não usufruir do direito à cidade (ou vila, neste caso). 

Não sei se para outras pessoas ficou tão perceptível como a cultura local está morrendo e o lugar se transformou num grande shopping center ao ar livre. Fico pensando em quem tem acesso a curtir de fato o lugar.

Enquanto andava pelas ruas lindas (que meu amigo Denni Sales apontou parecer as cidades cinematográficas das novelas da Globo), quase não via pessoas negras. As que via, estavam servindo nos restaurantes, nas bicicletas que fazem os passeios pela cidade ou na própria programação da FLIPF. 

O que se destacava era a grande quantidade de turistas brancos que eram os únicos a de fato utilizar aquelas ruas bonitas. Nesse sentido, é uma contrapartida muito boa a feira literária como uma estratégia de ocupação daquele espaço com programação cultural viva e crítica.

Tenho críticas à FLIPF que têm a ver com organização, mas a iniciativa é boa. Foi bom ver os ônibus de escolas de ensino primário, fundamental e médio levar os alunos, majoritariamente negros, para ver a vila e assistir às mesas da FLIPF.

Inclusive, o que falar do momento em que uma turma de alunos de ensino médio entra no auditório do Projeto Baleia Jubarte – onde acontecia a mesa de Martins e Augusto – para assistir três autores negros falando sobre o direito à cidade? Bom, coisas que apenas a arte pode fazer.

Leia Também: ‘3 Maneiras de Tocar no Assunto’: Peça premiada sobre homofobia termina turnê no Nordeste e segue para o Norte

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *