Uma promessa vazia de que tudo ficará bem: uma ‘resenha’ para ‘Triste não é ao certo a palavra’, de Gabriel Abreu

‘Triste não é ao certo a palavra’ (Companhia das Letras), livro de estreia de Gabriel Abreu, me fez baixar um pouco a guarda. Sentir.

Gabriel Abreu, autor de ‘Triste não é ao certo a palavra’/ Foto: Phillip Lavra – Divulgação.

Escaras. São aquelas feridas que podem surgir nas regiões de apoio. Quando uma pessoa passa muito tempo acamada, elas aparecem, como uma manifestação do corpo que suporta, ainda, o esvair-se.

Quando comecei a ler o livro Triste não é ao certo a palavra, não sabia que seria atravessado pela perda da minha avó Francisca. Relutei com este livro. Achei árduo atravessá-lo em alguns momentos, pois Gabriel escolheu uma forma muito peculiar de construí-lo, trazendo cartas [até aí tudo bem], fotografias, e-mails, “diários”, enfim, uma profusão de “textos” que, bordados pelo fio da busca, apresentam-se como romance, gênero que se encontra sempre em movimento.

No meu percurso de leitura deste livro, as bulas de remédio e a linguagem técnica, a qual me deixava perdido, atravancavam um pouco as coisas… Porém, à medida que eu lia, ficava sabendo, pela minha mãe, que a minha avó havia sofrido uma queda que a levou a ficar uns dias internada no hospital, onde os filhos com toda certeza ouviram recomendações, nomes de remédios, práticas diárias que precisavam ser feitas para o bem-estar da paciente. E a medida de identificação se intensificava a cada vez que ia tomando notas do estado em que a minha avó se encontrava e ia percebendo o quanto isso desconcertava principalmente a minha mãe [que estava ali na condição de filha-cuidando-da-mãe-que-adoecia-mais-a-cada-dia, ia perdendo a fala, a capacidade de se comunicar, etc.].

O que ninguém conta é que o luto começa bem antes. Mas eu me dei conta disso. O que gerou uma situação muito desconfortável, pois via as esperanças no grupo da família, os votos de que ela ficaria boa logo, que logo logo iria poder voltar para casa, etc. Fui me dando conta que eram “promessas vazias”. Não. A minha avó não vai ficar boa. Meu ceticismo me fazia ver que os anos de alimentação ruim e falta de exercícios, solidão e um par de coisas mais, tudo isso conflui para a morte. Essa palavra…

“Felizmente” a minha avó morreu dormindo, na casa da minha mãe. Digo isso porque poderia ser pior. Numa cama de hospital, com uma sonda. Enfim, a dor da perda é complexa e extremamente irrepresentável, mas ainda assim, o livro de Gabriel me deu algum caminho. Ele lembra que todos nós estamos à mercê disso.

Imagino o dia da tua morte e não consigo supor o que vou sentir. Pergunto-me se ao fim de todo o luto diluído pelos anos restará apenas o alívio e o remorso. (p. 186)

A minha avó também teve essas feridas pelo excesso de tempo apoiada na cama. Por mais que a minha mãe tenha se empenhado para que o leito fosse confortável, as feridas surgiram. Ao telefone, no sábado, tudo o que minha mãe consegue dizer é “acabou”, depois o choro toma conta. Ainda assim, depois de um tempo, ela consegue dizer “minha mãe morreu”, e essas palavras doem muito em mim. Talvez não necessariamente pela perda da minha avó, mas por imaginar o que a minha mãe está sentindo depois de tantos dias se dedicando à saúde de dona Francisca.

Gabriel não traz ao leitor o “conforto” do ponto final. No capítulo 53, ao trazer uma lembrança do passado da mãe através de outra pessoa, ele dilacera, ele consegue arrancar do meu rosto aquelas lágrimas que escondi da minha mãe porque eu achei que precisava ser forte para apoiá-la nesse momento.

“Nunca mais irei esquecê-la”, o personagem diz.

O que é irônico até, pois sabemos que M. é acometida por uma doença que faz com que perca a memória. Ou seja, ela que guardou as cartas com tanto carinho agora está impossibilitada de lembrar.

Aliás, essa coisa de lembrar e ser lembrado apareceu bastante para mim durante a leitura. Afinal, é preciso construir alguma sorte de “arquivo” para que possamos ser lembrados ou basta existir? E em algum momento tudo se perderá mesmo. Basta conhecermos alguém e alguém nos conhecer? O livro nos coloca diante disso, quando, num primeiro momento, o interlocutor das cartas não se lembra de M., nem mesmo ao olhar a sua foto. Ele reconhece a camiseta, mas não a pessoa que a usa.

Triste não é ao certo a palavra nos… nos não, me. Triste não é ao certo a palavra me fez baixar um pouco a guarda. Sentir. E sentir, acima de tudo, que a literatura exerce um papel muito importante ao confrontar, ao colocar o leitor diante dessas incertezas, dos fragmentos que constituem uma vida. É a estreia de Gabriel Abreu, e é um baita acerto. Não acho que seja um “livro para todo mundo”, mas creio que para todos os que tiverem coragem de lidar com um luto que se constrói aos poucos, pode ser uma boa leitura. Nada reconfortante.

De toda a construção formal do romance, destaco o uso do diário (ficcional) do bebê como artifício para a construção de voz narrativa dele, e do romance como artifício de construção da voz narrativa dela. Repare: é uma mãe que escrevia como se fosse o filho. E agora é o filho que escreve [não “como se fosse a mãe” mas] a mãe. A mãe da foto, da carta, do diário, das receitas, a mãe em suas várias facetas. Para que não se esqueça. Para que haja uma correspondência entre os dois. Uma “correspondência secreta em que mãe e filho dão voz um ao outro” (p. 36).

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