Pouco sei da vida dele, sei mais o que as letras de suas canções me provocaram. Sim, música pop, fabricada para massa, mas do padrão biscoito fino, saboroso e elegante.
Pensar que a vida é um corisco e saber ir embora dela com dignidade é algo que todo mundo sonha, religioso ou ateu. Tudo nos é dado a perceber e explicar pela representação, menos nossa própria morte, única coisa que não podemos representar, falar sobre. Só podemos falar da morte dos outros. E eu bem queria entender aquele mistério.
Mas esse mundo faz charme, sabe encantar e ao mesmo tempo intriga demais. Que mundo mais louco! Como querer ir embora dele, apesar de tudo?
Que me desculpe o leitor se exagero no improviso alterando versos alheios para tentar falar do próprio autor deles, Antonio Cícero. Pouco sei da vida dele, sei mais o que as letras de suas canções me provocaram. Sim, música pop, fabricada para massa, mas do padrão biscoito fino, saboroso e elegante. Cícero era poeta de vera, filósofo, tinha outros olhos e armadilhas, saía com tranquilidade da poesia clássica, grega ou latina, para fazer letra de canção popular.
Só alguém assim, apaixonado, que acha graça até mesmo em clichê, entenderia um inverno no Leblon quase glacial (e era verdade, dizem que a temperatura no Rio de Janeiro naquele inverno de 1994 baixou para a casa de incríveis seis graus).
O que posso dizer de meu mesmo, é que Antonio Cícero, por meio da voz e das melodias de sua irmã Marina, de Adriana Calcanhoto e de Lulu Santos, fez com que eu e minha cintura dura e tímida balançássemos nas poucas festinhas adolescentes que eu tinha coragem de ir. Era lindo o que eu conseguia fazer comigo mesmo a ponto de criar coragem e sussurrar para a garota que me interessava: “você me abre seus braços e a gente faz um país”. Ou então, outra que acreditava infalível: “talvez eu seja o último romântico”. Não, não dava certo. A garota nunca entendeu, desconfiou, não sei. Talvez não tenha visto nada se espelhando no meu olhar, nenhum voo, nenhum avião.
Tudo flui como rio, é fugaz. Imagino uma sensação parecida sentida por Cícero no derradeiro procedimento a que se submeteu lá na Suíça. Dizem que nessas horas reaparecem pra gente aqueles dias em que fomos mais felizes na vida. Não sei se é assim mesmo, quem experimentou jamais contou, é só a minha representação da morte do outro. Não adianta, a indesejada vai ser sempre algo que jamais se esclareceu.
Sobre Luiz Henrique Gurgel
Luiz Henrique Gurgel é paulista de Santo André. Sociólogo de formação e professor, das salas de aula chegou ao jornalismo. Foi editor de almanaque, pesquisador da história do samba, ghost-writer, assessor de imprensa, colaborou em jornais, revistas, trabalha com publicações diversas. É mestre em literatura brasileira pela USP. Em 2020 lançou seu primeiro livro de contos, “amores malfadados”, pela editora Primata (traduzido para o castelhano e lançado em 2023 na Argentina pela Caravana Editorial e Cabore Libros). Agora em novembro acabou de lançar “Porque era ele, porque era e outras quase histórias” (“cronicontos’) também pela Caravana Editorial.