A convite da Revista O Odisseu, a doutora em Letras Heloísa Stefan escreve sobre sua experiência na última Feira do Livro de Porto Alegre, mais especificamente sobre a participação do neurocientista Sidarta Ribeiro.
Gautama? Ribeiro? Ribeiro!
O nome dele chama. Seu olhar sereno chama. Suas ideias chamam. E, assim como o xará, também é iluminado e ilumina.
Sidarta Ribeiro trouxe luz para a 69ª edição da Feira do Livro de Porto Alegre, realizada entre 27 de outubro e 15 de novembro de 2023, na famosa Praça da Alfândega, no Centro Histórico da capital gaúcha. A Feira, além de ter vendido mais de 200 mil livros em 20 dias, proporcionou ao público bate-papos, apresentações e oficinas com temáticas variadas e interessantíssimas. Um desses eventos – bastante concorrido e que tive o privilégio de assistir – foi a conversa com Sidarta Ribeiro, autor de O oráculo da noite, Limiar, Sonho manifesto e do mais recente As flores do bem.
“Tecendo os fios da consciência: explorando os mistérios da mente” foi o nome dado ao bate-papo com o autor, realizado no Auditório Barbosa Lessa do belíssimo Espaço Força e Luz, pertinho da praça, e que contou com a mediação da pedagoga e recém-eleita conselheira tutelar Vitória Sant’Anna. Neurocientista renomado, Sidarta é uma pessoa simples, simpática e humilde, postura que contrasta com a de outros cientistas. Não deveríamos nos surpreender com isso, mas se o fato surpreende é porque é exceção: ele não é o típico cientista enfurnado em laboratório, não se vangloria da sua posição nem é arrogante ao falar do que sabe; pelo contrário, ele pratica capoeira, é aberto aos saberes ancestrais de todos os povos e compartilha o conhecimento!
Talvez por isso Sidarta tenha preocupações maiores, que envolvem a humanidade, e não apenas seu nicho na academia – e talvez por isso também tenha falado pouco sobre neurociência. Em sua conversa, mostrou-se preocupado com alguns pontos em especial: as mudanças climáticas, as guerras, o avanço da inteligência artificial e a desigualdade de renda. E não há como negar, pois estamos vivendo isso “tudo ao mesmo tempo agora”, parafraseando os Titãs. Está tudo escancarado: em 2023, nosso planeta está passando pela maior anomalia de temperaturas em milhares de anos e continua sendo palco de várias guerras (uma inclusive iniciada há pouco mais de um mês). Estamos virando cobaias da tecnologia, que vai nos deixar sem trabalho (o que faremos sem trabalho?), e, enquanto isso, os ricos continuam enriquecendo, sonhando com voos espaciais, e os pobres estão cada vez mais miseráveis – em todos os sentidos. Só não vê quem não quer. A Terra e a humanidade estão em perigo.
Porém, essa preocupação toda contrasta com seu otimismo. A partir da fala de Sidarta na Feira e da leitura de Sonho manifesto: dez exercícios urgentes de otimismo apocalíptico, me vêm à mente paradoxos, antagonismos, palavras opostas: competição vs. colaboração, acumulação vs. compartilhamento, ameaça vs. empatia, divisão vs. união, isolamento vs. convívio, retenção vs. confluência de conhecimento. Parece difícil ser otimista com o cenário atual, mas acredito que esses paradoxos permitem enxergarmos nossa situação de forma bastante didática: é chegado o momento – único, conforme ele – de fazermos escolhas, de fazermos a diferença. O caminho parece bem claro.
Mas esse otimismo de Sidarta demanda urgência! Temos que decidir agora: escolher o que foi bom no passado e excluir o que não serve mais. É hora de deixar para trás a competitividade, esse traço da evolução que já foi útil na história da nossa espécie, mas que hoje não tem mais razão de ser. O mundo já produz comida suficiente; o que falta é ela chegar a todos. Esse traço ancestral do Homo sapiens – oprimir, explorar, expropriar o mais fraco – precisa ser abandonado; a capacidade de cuidar dos outros e trabalhar em prol de objetivos comuns – e que também é uma característica da espécie – precisa ser honrada e reaprendida.
Para Sidarta, vivemos uma época propícia para tomarmos as decisões que afetarão nosso futuro, para o bem ou para o mal: está em nossas mãos curar essa ancestralidade brutal e aprender com os sábios de todas as culturas, entre eles os povos originários do Brasil. Há uma dualidade no ser humano que já poderia ter sido superada: essa espécie estranha e violenta que conquistou o planeta há cerca de 100 mil anos, combatendo os “de fora”, sabe proteger os “de dentro”. Mas todos nós vivemos no planeta, todos somos “de dentro”, então o que estamos fazendo? O que estamos esperando? O que nos impede de agir para mudar?
Será que estamos todos doentes? Sidarta fala da doença do dinheiro, da acumulação predatória de riquezas materiais, da exploração dos fracos, resultado do capitalismo desenfreado; fala também da divisão da sociedade entre ricos e pobres, do preconceito nas mais variadas formas – racismo, machismo, sexismo. Estamos cegos? Por que nos afastamos da natureza? Por que comemos tão mal, por que não dormimos bem, não nos exercitamos, não temos boas relações? Precisamos de mais indignação, urgência, vontade de mudar e coragem para agir.
Sidarta é favorável à renda básica universal e acredita que somente uma revolução a partir da educação – não apenas da educação formal – poderá transformar nossa realidade, onde não haja mais predador e presa, onde jogador de futebol e professor tenham salários equivalentes, onde seres humanos coabitem e cuidem uns dos outros respeitando a natureza e vivendo em harmonia com as demais espécies. Precisamos retomar nossa capacidade de sonhar para transformar. E para sonhar, entre outras coisas, precisamos ler, saber e conhecer mais.
A Feira do Livro de Porto Alegre é – e esperamos que continue sendo – uma ótima oportunidade para fundamentar nossos sonhos. Para quem não a conhece, é um evento lindo que segue rumo à sua 70ª edição em novembro de 2024, dando voz a muitas vozes e sendo iluminado por muitas pessoas que são farol, como Sidarta Ribeiro. É um espaço democrático, plural, que reúne leitores, autores e passantes no meio de uma praça antiga e arborizada e que fomenta conhecimento e cultura. E sim, de vez em quando chove, mas às vezes é uma chuva roxa, de flores de jacarandá, a árvore da sabedoria, como reza a lenda. E como diz o slogan da Feira, “quem lê, sabe o caminho”.
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Sobre Heloísa Stefan
Heloísa é licenciada em Letras pela UFPEL e Doutora em Letras pela PUCRS. Atua como preparadora, revisora e supervisora editorial.
Heloísa, que texto lindo!!! Não é só orgulho de mãe! Parabéns! A cada dia me surpreen- des mais.❤️
Muito oportuno. O artigo resume com clareza os dilemas de nossa era. Propõe questionamentos urgentes e, cada vez mais, necessários.