“Do outro lado do mar”, uma produção do Teatro dos Novos, com direção de Marcio Meirelles, consegue ser comovente e provocar reflexões sobre a burocracia do mundo moderno e a solidão.
O que escrevo não é, precisamente, uma resenha ou uma crítica, visto que não tenho especialidade para tal. Escrevo então um texto que é resultado de uma série de reflexões que tive ao ir assistir na última sexta-feira, 17 de janeiro de 2025, a peça “Do outro lado do mar”, peça com direção de Marcio Meirelles e texto de Jorgelina Cerritos, no Espaço Cultural da Barroquinha, em Salvador.
No palco, tons de azul, branco e amarelo criam uma atmosfera que conduz o espectador pela mão a um lugar de reflexão profunda. São projetadas imagens do mar, do céu, e ouvimos o som de bichos marinhos, aves e o latir de cães. Tudo contribui para que imaginemos que estamos num espaço longínquo e onde coisas irreais podem acontecer.
A peça acontece num único cenário e no diálogo entre dois personagens (Pescador do Mar e Dorotéia, interpretados por Edu Coutinho e Andréa Elia), num diálogo absurdo. O Pescador do Mar busca um registro, uma documentação que comprove sua existência para que possa retornar ao seu lar (do outro lado do mar) e finalizar seus compromissos da vida. Ele recorre a Dorotéia, personagem que trabalha num cartório localizado no que ela chama de “Fim de Mundo” (uma praia que não é possível localizar nem no mapa).
Diálogo Absurdo
A comunicação entre os personagens é marcada pelo tensionamento do impossível. Pescador do Mar não tinha nome ao chegar no cartório e batiza a si mesmo como “Pescador do Mar” apenas ao saber da necessidade de se ter um nome para se ter um documento.
Na verdade, não é tão suficiente, e é isso o que Dorotéia tenta explicar. Não é possível se criar uma certidão de nascimento de alguém que não tem nome, que não tem pai e nem mãe, que já é adulto. Sem a certidão de nascimento, não é possível tirar a identidade.
Pescador do Mar não recebe a negativa de bom grado. Está destinado a ficar no cartório até conseguir de Dorotéia o entregue o que está disposto a buscar. O diálogo abre bastante espaço para o poético. A inserção de intervenções monológicas perante uma câmera posicionada no palco, cuja imagem reflete na parede do palco, é a abertura para a reflexão sobre questões como a solidão e a persistência das instituições e convenções sociais como amarras que colonizam os corpos.
A Colonização do Sujeito
Pescador do Mar tenta compreender como simplesmente existir não é o suficiente para conseguir se apresentar no mundo como alguém que possui direitos. Porém, mais do que isso, retoma a uma reflexão sobre como as instituições se organizaram em torno de processos burocráticos que excluem e constroem muros.
Numa reflexão poderosa e que conversa com àquela feita por Franz Kafka em “O Processo”, vemos como algo tão simples como tirar um documento pode ser tão difícil. E por quê? Edu Coutinho vive o personagem e consegue transmitir ao espectador o sentimento pulsante de esperança, de quem vive e deseja o amor genuíno e que, portanto, está disposto a chegar onde for necessário para viver o que se sonha.
Os momentos de intervenção monológica perante a câmera acabam por intensificar essa sensação. A música, em rifles de guitarra profundos e melancólicos sobrepostos ao constante som das ondas do mar, garantem que o público consiga sentir a profundidade do que se debate em cena: ser eu não é o suficiente?
Dorotéia espera Godot
Concomitantemente ao conflito existencial de Pescador, Dorotéia também está envolvida em suas próprias inquietações. No diálogo são apresentadas as frustrações de uma mulher que está sozinha no mundo, sem filhos, sem um amor, sem ninguém que a espere em casa. A satisfação de vida de Dorotéia é justamente o seu trabalho, mas até isso está por um fio.
Isso porque não é mais jovem como antes e seu trabalho já é visto como obsoleto. Assim, ela é transferida para um lugar remoto enquanto espera o momento em que será descartada definitivamente, ou melhor, substituída. Enquanto isso, ela espera que alguém venha, alguém com um problema real e que ela possa resolver, o que não é o caso do Pescador do Mar.
O tensionamento entre os personagens permite que a abertura para que um conheça o outro apareça, o que faz com que se reconheçam. São ambas figuras solitárias em busca de um lugar no mundo. A atuação de Andréa Elia para mim foi o ponto alto da produção. Engraçada, tocante, sabendo transitar muito bem entre o misto de sentimentos que a personagem possui, é de Dorotéia, na pele de Elia, que vêm as mais tocantes cenas da peça.
Também achei interessante como a peça conseguiu abordar as questões referentes ao universo feminino através da personagem Dorotéia. A solidão da mulher de mais idade, a maternidade e a autocobrança.
“Do outro lado do mar”: bons diálogos, pouca movimentação
Como especifiquei no começo do texto, não se trata precisamente de uma crítica especializada, mas sim da opinião de um espectador de teatro. Saí do espetáculo satisfeito com a produção baiana que tem bons atores, boa direção e um texto comovente. Mas também sentindo que faltou algo.
Depois de pensar um tempo, pensei que a peça no modelo de cenário único e em diálogo, exige tempo. Tempo o suficiente para que a gente consiga desenvolver, junto aos personagens, uma relação de empatia formada pelo reconhecimento. Talvez a peça não tenha tido esse tempo.
Foi relativamente curta, o que me deixou com a impressão que os conflitos foram resolvidos rápido demais. Isso sem falar que faltou um momento de confronto mais abrupto ou uma reviravolta, algo que justificasse precisamente a mudança de atitude dos personagens um perante o outro.
Talvez devesse ter mais movimentação também. Os personagens estão limitados aos seus espaços no palco, inclusive restritos a eles por conta da câmera à qual eles precisam recorrer. Assim, os atores não se tocam e eu talvez quisesse que eles se tocassem num momento de romper emocional.
O saldo, contudo, é positivo! A temporada de “Do outro lado do mar” foi curta, com apenas algumas apresentações, mas será encenada novamente dia 14 de fevereiro no espaço Subúrbio 360. Recomendo que você vá ver o trabalho de dois ótimos atores numa produção que certamente vai te deixar com alguns questionamentos sobre o modo como vivemos neste mundo.
“Do Outro Lado do Mar”
- Realização: Teatro dos Novos (Teatro Vila Velha);
- Texto: Jorgelina Cerritos;
- Encenação: Marcio Meirelles;
- Atores: Edu Coutinho e Andréa Elia;
- Próxima Apresentação: 14 de fevereiro, 19h, no Espaço Subúrbio 360.
- Instagram: @dooutroladodomar
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