Em setembro de 2020, conheci a sensibilidade e potência da escrita de Patti Smith quando li “Só Garotos” (lançado em 2010- Companhia das Letras). Fiquei encantada com a capacidade que ela tem de observação e a delicadeza do seu olhar. Esse impacto já surgiu nas primeiras linhas do livro, pois ao contar sobre um passeio que fez com a mãe, quando ainda era criança, ela escreveu o seguinte:
“ ‘Cisne’, minha mãe disse, sentindo minha excitação. Ele tamborilou na água brilhante, batendo suas asas grandiosas, e alçou voo no céu.
A palavra por si mal dava conta de sua magnificência, nem continha a emoção que ele produzia. Sua visão gerou uma necessidade para a qual eu não tinha palavras, um desejo de falar do cisne, de dizer algo sobre sua brancura, a natureza explosiva de seu movimento e o lento bater de suas asas.
O cisne mesclou-se ao céu. Fiz força para encontrar palavras que descrevessem minha própria ideia sobre ele. “Cisne”, repeti, não totalmente satisfeita, e senti uma pontada, uma saudade curiosa, imperceptível aos passantes, à minha mãe, às árvores ou às nuvens.”
Patti Smith – Trecho do livro “Só Garotos” (Companhia das Letras)
Em cada página do livro, Patti demonstra essa intensidade nos sentimentos, nos amores e nas dores. Fala de perdas, como o aborto que fez, e de encontros com personalidades como Janis Joplin e Salvador Dali. Mas principalmente fala de entrega a um amor maior: a arte.
Por isso, quando vi que em abril desse ano (2023 – Companhia das Letras) ocorreria o lançamento de “Um Livro dos Dias”, fiquei super empolgada, pois li que seria uma compilação de fotos que a autora posta no Instagram e suas legendas. Amo fotos e com a sensibilidade de Patti, sabia que as legendas seriam igualmente interessantes, e não decepcionou.
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“Um Livro dos Dias”
Esse é um livro que encaixo na categoria “para sorver”, porque ele não é um livro “para degustar”, ou seja, simplesmente dar umas bebericadas uma vez que outra, nem da categoria “para devorar”, que são aqueles que só paramos de ler quando o livro termina. “Um Livro dos Dias” é em formato de diário, são 366 fotos com legendas, uma para cada dia do ano, então, tenho sorvido as páginas assim, lentamente, cada dia uma imagem nova, uma comemoração de aniversário ou uma homenagem à um grande nome que se foi, seja da música, dos esportes, figuras que Patti admira.
Quando a semana é muito corrida e não consigo curtir a página do dia, deixo para visualizar no final de semana, fico admirando só o que compete aquela semana, sem trapacear.
Claro que para escrever sobre o livro, dei uma roubadinha e espiei algumas páginas aleatoriamente e achei muito lindo encontrar a foto da Greta Thunberg no dia 03 de janeiro, embaixo está escrito: “Greta Thunberg dedicou a infância ao Ativismo. A natureza sabe disso, e sorri para ela no seu aniversário.”
Já no dia 12 de julho a imagem é da lápide de Susan Sontag e a autora escreve:
“O repouso final de Susan Sontag no cemitério de Montparnasse; a superfície polida de sua lápide refletindo árvores e céu.”
O livro contempla diversas fotos de lápides, de rostos de um tempo que ficou para trás, mas ainda carregam olhares vivos e diversos objetos, entre eles os óculos de Patti e a legenda do dia 04 de maio diz:
“Sou grata por coisas aparentemente pequenas, como os meus óculos, sem os quais eu não poderia ler.”
O livro tem 400 páginas, e da página 397 a 399 a roqueira nos dá mais um presente: uma lista de “Sugestões de Leitura”, para nós, amantes de livro é um deleite (pena que alguns títulos não têm tradução no Brasil).
No texto inicial do livro, Patti nos explica por que resolveu fazer o livro com cara e conteúdo de seu Instagram, fala sobre o amor pelas fotos, principalmente polaroide e sua migração para as fotos de celular. Explica também por que começa a primeira foto da rede social e do livro é a mão da artista e termina o texto dizendo:
“As redes sociais, com sua distorção da democracia, às vezes estimulam a crueldade, os comentários reacionários, a desinformação e o patriotismo, mas também podem ser úteis. Está nas nossas mãos. A mão que compõe uma mensagem, acaricia o cabelo de uma criança, puxa a flecha para trás e lança. Estas são minhas flechas, apontando para o coração singelo das coisas. Cada uma delas unida a algumas palavras, oráculos soltos. Trezentos e sessenta e seis jeitos de dizer olá.”
É mais uma obra de arte dessa mulher incrível. Encerro o texto com essa foto que amo e que é capa do livro Só Garotos. A legenda diz:
“Coney Island, 1° de setembro de 1969. Comemorando nosso segundo ano juntos, Robert Mapplethorpe e eu celebrávamos o início de uma nova vida em Nova York.”
Aline Félix – Colunista
Aline é colunista e editora da Revista O Odisseu. Também administra o perfil “Fração de Livro”, no Instagram, em que faz uma curadoria de trechos de livros diversos e os recita.