Resenha da antologia “Eros sobre os abismos”, lançamento da P55 de organização do escritor Marcus Vinícius Rodrigues.
A antologia “Eros sobre os abismos” (P55, 2024) reúne sete dos melhores autores baianos em atividade. Se cada um deles possui vozes diferentes, únicas e reconhecíveis, encontram-se aqui em torno de um assunto universal: o sexo. Mas não qualquer sexo. A proposta do organizador da antologia, o escritor Marcus Vinícius Rodrigues, foi a de juntar contos sobre sexo nas ruas.
É interessante ver como cada autor aceita o desafio. Claramente a relação com a cidade muda a depender do ponto de vista de quem a observa e por isso vemos uma pluralidade de representações deste espaço geográfico. Alguns são mais tímidos, outros escrevem sem medo das ruas, todos se encontram no ambiente público que, por mais que não seja o espaço em que haja a consumação, certamente é onde se desenvolve a trama.
Ousada, Rita Santana faz culminar o sexo no Mercado das Sete Portas, um dos espaços públicos mais populares de Salvador. Mais tímido (noutras palavras, muito romântico), Dênisson Padilha Filho nos dá o sexo contido (e apertado?) dentro do carro com uma prostituta. Ambos os contos são excelentes, mas chegarei lá. Vamos falar um pouco de cada um.
‘Deus vestido de chuva’, de Dênisson Padilha Filho
A antologia abre com o conto de Dênisson que nos apresenta esse personagem um tanto “Murakamiano”: um homem sozinho, com saudades de sua musa inspiradora, embebedado na própria frustração e solidão. Poderia ser qualquer protagonista do livro de Haruki Murakami. Aparentemente, há uma tendência de homens heterossexuais em sofrer por amor com maiores doses de autodepreciação e apatia, ao passo que mulheres são mais dramáticas, intensas e, por vezes, vingativas.
O personagem sente falta de Marta e vai às ruas em busca de encontrar sua amada em outra “fêmea” (como o próprio texto apresenta), em uma prostituta. Aqui, Dênisson faz um jogo interessante de duplos ao nos apresentar a prostituta Margô. Perceba que existe a semelhança entre os nomes (ambos iniciados em M e ambos com 5 letras).
A substituta desperta sentimentos que vão da intensidade, da paixão veloz, ao autodesprezo e ao nojo. Ao passo que Marta tem mania de limpeza, Margô é uma mulher da rua que causa tamanha estranheza ao personagem que busca se lavar compulsivamente após o encontro, como numa busca de lavar a moral. O conto é excelente, ímpar. Traz a reflexão sobre o amor com tempo de duração: 1h num excelente custo-benefício, R$ 50. Numa época em que todo amor é negociado e exige um nível de entrega, qual a diferença entre a rapidinha com a prostituta e uma porção de casamentos por aí. Acho que essa é a provocação. Válida.
‘Futuere é mesmo uma palavra elegante’, de Kátia Borges
Em seu conto muito bem executado, Kátia Borges nos leva à Praia da Lagoinha, no Ceará, para uma cena de sexo abrupta entre duas mulheres que parecem nunca terem tido contato profundo antes. Há algo de muito interessante neste conto, que é o modo como somos conduzidos rapidamente ao sexo propriamente dito, que acontece logo no início da narrativa. Mas e depois, o que vem? O que vem depois do gozo?
Li uma vez em algum lugar que os homens cultivam uma relação diferente que as mulheres sobre o orgasmo. Enquanto os homens entram numa ótica de autopunição e culpa, as mulheres sentem-se mais livres, realizadas, prontas para ver a vida sob outra ótica. É um pouco disso o conto de Kátia. O que se segue é o diálogo denso e ontológico de dois corpos que acabaram de gozar.
Kátia faz isso com domínio da forma. Intercala as duas narradoras num diálogo que parece não falar de nada ao mesmo tempo que fala de tudo. Distancia-se do sexo descritivo, mas permanece no ambiente do prazer que perdura no relaxamento. Quase se ouve o barulhinho das ondas ao fundo.
‘Sofrência’, de Victor Mascarenhas
O conto que se segue é o que mais faz questão de aproximar a trama da baianidade, coisa que faz bastante sentido! A Bahia é um lugar que exala sexo. Falamos de sexo como quem fala do clima. Está nas músicas, está nos ditados, está em nós. Somos apresentados a dois personagens que demonstram o esforço do autor em falar de algo essencialmente nosso. Fico um pouco em dúvida quanto ao que isso pode significar no texto.
O personagem Jurandir é um pedreiro, descrito como “barrigudo”, alguém desprovido de beleza, por assim dizer, mas com muito tesão. Cai de amores pela novinha Dayane, descrita como uma adolescente em fase do desabrochar hormonal. Todas as mudanças corporais no corpo de Dayane estão acontecendo, de modo que ela é inteiramente mulher e menina ao mesmo tempo. Nem precisamos dizer o quanto homens heterossexuais conseguem sexualizar esses corpos, objetificá-los.
Victor vai pelo caminho da predadora. Dayane tem consciência de seus “dotes” e os utiliza para conseguir o que quer: dinheiro, roupas e objetos caros. É assim que Jurandir consegue o momento de intimidade com a menina num motel: ele se compromete a comprar um vestido à garota.
O diálogo no motel é hilário e envolve uma série de desencontros entre os personagens com objetivos diferentes naquele quarto. Victor consegue escrever de forma que você consegue relacionar com pessoas que conhecemos. Parece uma história que você ouve numa mesa de bar. É crível, é bem feito.
Me incomoda a descrição dos personagens, especialmente a de Dayane. Ela seria um fruto da “miscigenação” brasileira (palavra do narrador no texto) e eu achava que esse tipo de descrição teria ficado nos anos 1990. Acho que ainda existe um entrave na descrição dos corpos de mulheres negras de pele mais clara, mestiças. Eu consigo sentir a falta que a palavra “mulata” faz a aos autores que suspiram de nostalgia de Jorge Amado, Ubaldo Ribeiro, Rubem Fonseca e outros. São tempos difíceis para homens heterossexuais e não por acaso alguns optam pelo caminho da autocomiseração. Eu me divirto com isso tudo.
‘A mulher e o tigre’, de Rita Santana
Eis um conto onde o sexo demora a acontecer. Rita Santana nos leva a um passeio por Salvador sob o ponto de vista de uma mulher que arde em desejo, mas também em amor, inquietação, medo, dúvida. A autora constrói imagens belíssimas da paisagem da cidade de Salvador, da areia da praia, do céu, do desabrochar das flores, um recurso interessante de paralelismo com o que acontece no interior da personagem: tudo é um desabrochar, é movimento constante, é beleza, melancolia.
Os personagens parecem viver um estranhamento. Virginia e Khanam já são um casal quando os conhecemos, mas há algo entre eles que não parece certo. Uma fúria em Virginia, uma agressividade em Khanam. Os dois parecem não estar sintonizados. Gosto muitíssimo de como Rita vai descrevendo esse estranhamento sem recorrer a clichês. Há embate, mas não há briga. É tudo por “debaixo do pano” e apenas olhos atentos poderiam perceber isso.
Há, entretanto, uma tensão sexual que permeia os dois. Percebemos então que esse conflito também é desejo e então podemos conjecturar à vontade! Eu tenho minhas conjecturas. Talvez o sentimento de possessividade, de ressentimento, tudo se encontrando no medo de se perderem um do outro. Me lembra aquela canção da Luedji Luna: “Não vá embora/ É o que eu digo/ Ele é meu erro/ Quase um engodo/ Meu gozo preso/ Preto sem rumo”.
‘Deriva’, de Marcus Vinícius Rodrigues
Em “Deriva”, Marcus Vinícius Rodrigues retoma alguns dos temas que são comuns em sua obra: o militarismo, o simbolismo religioso, a adolescência e o despertar sexual. Quem conhece o autor sabe que ele já desenvolve esses temas com maestria e aqui não é diferente, embora eu ainda prefira outros de seus contos.
Juliano, personagem principal, um jovem vindo do interior e ainda conhecendo Salvador, ainda com muitos medos da cidade grande, pulsa em desejo. É o despertar que se aproxima. Os olhos já observam com mais calma os corpos masculinos, grandes, volumosos, com contornos bem definidos. É fácil retornar à própria descoberta sexual neste conto, pois o autor consegue captar esse sentimento dúbio entre o medo e a curiosidade, a culpa e o tesão.
Gosto da cena introdutória com o barulho dos tambores que anunciam o desfile militar que se aproxima com o 7 de setembro. No caso, o conto se passa na noite do dia 6, antes do desfile, entre a Rua Carlos Gomes e o Beco de Maria Paz, em Salvador. O personagem é atraído por esses sons das ruas que parece chamá-lo, atraí-lo. É na figura deste militar misterioso que nosso personagem se vê preso.
Ele parece ser a própria personificação da tentação. Juliano o conhece na rua, naquela noite em que os militares se amontoam em preparação ao desfile. O que Marcus consegue fazer com precisão é o diálogo que transborda desejo quando não se parece dizer nada demais. É o jogo de sedução sem clichês até culminar no convite que é irrecusável. Um convite à independência do próprio corpo, a escolha do desejo.
‘Corte’, de Clarissa Macedo
Clarissa Macedo talvez consiga fazer o contraponto ao que a heterossexualidade masculina contemporânea pode representar em seu conto “Corte”. Encontramos uma narradora mulher que parece navegar nas águas desta nova onda do feminismo e todas as suas pautas. Está ciente de seus desejos, do seu corpo, das suas vontades, está disposta a entrar no jogo de sedução, mas também tem consciência de suas fragilidades, tristezas, inseguranças.
O conto começa com a narradora contando que esteve bêbada e disposta a procurar uma presa sexual. É gostoso ver esses papéis invertidos, a mulher no comando da situação, em busca de se encontrar com o pleno gozo. Ela sabe quais são suas zonas erógenas, o que a excita e o tipo de homem que quer.
O rumo que a narrativa toma é pouco óbvio e talvez este seja um conto que precise ser lido, pois qualquer coisa que eu diga pode estragar o clímax que a autora busca trazer. Na minha leitura, o “corte” que existe é explícito. Muito ciente do que desejava fazer, Clarissa interrompe a narrativa quando pensamos que ela estava indo por um caminho, nos revelando outra face do sexo violento que poucos desejam enxergar. Isso só é possível porque ela construiu uma narradora que é sarcástica. Portanto, fãs de Fleabag e Fernanda Young, temos um conto para vocês!
‘Sol sobre ouro’, de Suênio Campos de Lucena
A antologia termina com o conto de Suênio que, assim como Marcus Vinícius, escolhe trabalhar com algumas simbologias religiosas, quase num embate barroco de trevas e luz, pecado e redenção. Aqui, precisamente, temos um personagem que parece ter saído de um poema de Gregório de Matos, transitando entre a vontade de conhecer o mundo e o corpo e também o medo da frustração, da dor.
Esse contraste também é visível nos personagens Ramon e Diego. Enquanto Ramon é um rapaz que tem receio, tem medo da mão punitiva de Deus, de sofrer algum golpe, Diego sabe o que quer e está disposto a fazer o que for necessário para conseguir. Diego quer Ramon.
O que eu percebo do personagem de Ramon é que ele não se vê enquanto alvo do desejo de Diego, o que gera essa desconfiança. É como se ele olhasse para esse rapaz sexy e questionasse os interesses. Ora, não é nada difícil se identificar com isso, correto? Dito isso, gosto da maneira como Suênio não cria uma narrativa previsível. Todos nós permanecemos com esse estranhamento perante Diego em busca de saber o que ele deseja de verdade. Bom, para saber, é preciso ler o conto. Vale muitíssimo a pena.
Apesar de ser uma antologia sobre sexo, o trabalho dos autores não se resume ao erótico. Muito do que se entrelaça ao sexo, suas implicações, sofrimentos e prazeres, vira tema na mão de sete talentosíssimos escritores. Uma leitura muito boa!
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