‘Pretamorphosis: Biografia não autorizada de um ex-branco’, de Aldri Anunciação: no limite entre a ficção e a teoria

Mesmo sem que haja o interesse em entender o racismo estrutural, ‘Pretamorphosis: Biografia não autorizada de um ex-branco‘, de Aldri Anunciação, funciona como boa literatura.

O escritor e dramaturgo Aldri Anunciação, autor de ‘Pretamorphosis: Biografia não autorizada de um ex-branco’/ Foto: Caio Lírio (Reprodução).

Não é de agora que Aldri Anunciação dialoga com o autor tcheco Franz Kafka. Recentemente, escrevi para o número 17 da revista O Odisseu que Aldri é Kafkiano quando trabalha o absurdo que, na verdade, é a possibilidade que o nosso mundo em sua atual conjuntura oferece. Para mim, essa é a perfeita definição do que é distopia: a hipérbole da realidade em seu maior extremo possível. 

Na literatura de Aldri Anunciação, as violências sofridas pela população negra são levadas ao absurdo da irracionalidade justamente para mostrar o quanto que a nossa realidade é, em si, absurda e irracional. Nesse sentido, Aldri é o autor brasileiro que mais dialoga com Kafka, a começar pelas referências bem trabalhadas, fruto do conhecimento que o autor baiano tem da obra do autor tcheco.

No entanto, não é minha pretensão nesta crítica falar o óbvio sobre Aldri Anunciação e seu diálogo com Kafka, todavia, não poderia começar a falar do livro Pretamorphosis: Biografia não autorizada de um ex branco sem falar isso. Sim, todo o livro trabalha a estrutura da novela clássica de Franz Kafka sem nenhuma tentativa de esconder isso. 

Afinal, o protagonista da história, o jovem Gregório, claramente é uma referência ao Gregor Samsa d’A Metamorfose. Semelhantemente, o ponto inicial da novela de Aldri começa com uma transformação radical e, aparentemente, fantástica. Porém, aqui o personagem não se vê metamorfoseado em um inseto gigante, mas sim em um homem negro, uma metamorfose que pode gerar tanto incômodo para a sua família quanto se transformar num inseto:

“Em desespero, ele decide verificar através do espelho a dimensão da negritude que invade seu corpo branco. Caminha lentamente até o grande espelho numa ansiedade contida. Ao olhar refletido, Gregório fica ainda mais atônito: a superfície integral do seu corpo estava negra. Dos pés à cabeça em negritude étnica. Ele retira ligeiramente a camisa branca revelando um tronco negro, e assim vemos que se trata de um homem negro. Completamente intrigado, Gregório se pergunta ‘quem é você?’”

Aldri Anunciação em ‘Pretamophosis: biografia não autorizada de um ex branco’ (p. 18)

A Sátira perfeita em ‘Pretamorphosis’

Gostaríamos de dizer que ser negro hoje não seria um grande problema. Afinal, o mundo é outro, os direitos civis estão em outro lugar no debate social, não “existe mais” a escravidão. Porém, a realidade é muito mais complicada e Aldri consegue trazer as violências sutis que pessoas negras vivem até hoje.

Inclusive, o autor consegue trazer muito bem o contraste dessa realidade de avanços da pauta do racismo numa sociedade que se renova na feitura do preconceito de cor. Para isso, Aldri parodia alguns dos elementos de nossa pós-modernidade e toda a sua complexidade. Vale mencionar o quanto que a paródia, no texto pós-moderno, é um elemento de hipertexto importante e que abre o espaço para uma crítica mais sarcástica, algo que Aldri consegue fazer muito bem. 

Para Pedro Alberto da Silva Sales, a paródia é um recurso muito útil para desmistificar o fato histórico, dessacralizando-os por meio da sátira. Dito isso, também é possível parodiar o momento presente e Aldri faz isso, por exemplo, ao construir uma personagem que é uma influencer de autoestima e estética de pessoas negras, mas que apenas namora homens brancos. Isso, para mim, é uma ótima forma de representar as contradições de nossa atualidade, além de abrir um diálogo direto com a obra de pensadores como Fanon e Audre Lorde.

Outra paródia interessante é a personagem Ana, namorada de Gregório, e que é acadêmica de sociologia numa universidade pública (ele não diz qual, mas é fácil imaginar). No início da narrativa, vemos Ana enquanto uma pessoa mais desconstruída, menos propensa a fazer comentários sarcásticos sobre pessoas de cor, como a família de Gregório faz. Mas o modo como Ana reage à pretamorphosis de Gregório nos faz perceber que, mesmo os mais desconstruídos,  podem ainda esconder uma pulga atrás da orelha quando se trata da relação afetiva com uma pessoa negra.

Gregório: um ex-branco

Mas voltemos ao enredo: Gregório é apresentado como um jovem branco de classe média alta. A sua metamorfose, ao contrário do xará de Kafka, é gradual: primeiro, ele percebe uma mancha escura em sua mão e então lemos que essa mancha cresce até que todo o corpo esteja enegrecido. Não há uma explicação lógica para essa metamorfose que se inicia quando o personagem, que é um corretor de imóveis, acaba caindo, por acidente, em uma festa apenas com pessoas negras no topo de um prédio de um bairro luxuoso em Salvador.

Uma vez que se vê negro, Gregório se esconde da família e de todos (sim, há pastiche bem feita de Kafka), em busca de encontrar uma forma de como seguir normalmente com a sua vida. Acontece que a pele agora preta traz outra dinâmica para a vida do personagem.

Veja, da mesma maneira que se transformar num inseto gigante traz consequências no que se refere à reação das pessoas à sua volta, o mesmo pode se dizer de alguém que, hipoteticamente, se torna negro. Se a realidade das pessoas pretas era, antes, tratada com desdém pelo Gregório, agora ele vive na prática o racismo que tanto desprezou. 

Aldri faz muito bem essa transição ao mostrar como o próprio personagem se mostra mais acanhado ao entrar em lugares apenas com pessoas brancas. Mostrando, inclusive, que Gregório jamais notaria isso se fosse branco. É a condição de preto que o faz refletir a raça enquanto um aspecto fundamental da construção social de um ser humano. 

É apenas ao se ver enegrecido que o personagem reflete sobre os privilégios que possuiu enquanto um indivíduo branco. Privilégios esse que, anteriormente, poderiam sequer ser vistos enquanto privilégios: como ir ao mercado sem ser incomodado, como conseguir amar uma pessoa sem que a raça seja um fator determinante nesse relacionamento. 

Portanto, a virada de chave que começa com a pretamorphosis acaba por se tornar uma virada de chave de consciência. Nesse sentido, o personagem Solano tem papel fundamental. Solano é um jovem negro que pertence à mesma turma no curso de pós-graduação que Gregório faz. Na verdade, ele é o único negro na turma. Foi uma escolha muito boa de Aldri construir esse personagem e construir a relação entre Gregório e Solano. 

Isso porque é a Solano que Gregório busca quando se vê negro e o “amigo negro” parece entender de cara tudo o que acontece. Além disso, Solano vai ser personagem fundamental nessa construção do senso crítico de Gregório, uma vez que ele é um jovem negro muito próximo da teoria pan-africanista. Aldri o apresenta como um jovem que lê bell hooks, Grada Kilomba, Carla Akotirene e vários outros intelectuais negros. 

‘Pretamorphosis’: uma novela tese

Para construir essa tomada de consciência, Aldri Anunciação recorre a uma série de teóricos das ciências sociais. O livro é repleto de referências diretas a esses filósofos e pensadores de forma quase exaustiva e até mesmo existe, no fim do livro, um glossário para explicar temas e termos que ele trabalha no livro. Cabe questionar se esse é um recurso válido, especialmente no que se refere a como isso interfere na leitura do texto literário. 

Nesse sentido também o texto se afasta mais de uma obra literária engajada e se torna uma “novela tese” (um primo do mais famoso “romance tese”) em que o texto literário não encontra um fim em si mesmo, mas está apontando para exemplificar um conceito ou uma teoria. Eu, particularmente, fujo de romances-tese e acho que cabe muito mais escrever um tratado filosófico que um romance que explica conceitos. No entanto, Aldri faz isso de forma diferente e até mesmo positiva. 

O autor usa e abusa da didática ao longo do texto: ele quer provar um ponto e é bem sucedido nesse quesito. Fica muito nítido ao leitor que a problemática da raça é algo que interfere nas relações sociais em uma sociedade estruturada no racismo.

Como mencionei, Aldri faz isso de forma que não se torna algo negativo uma vez que não esgota a ficção nisso. Sim, Pretamorphosis é uma novela-tese, mas também é ficção da melhor qualidade nas mãos de um ficcionista de mão cheia, que constrói personagens cheios de camada, um enredo muito bem executado e sem pontas soltas, reviravoltas (peripécias) que funcionam muito bem e que certamente conseguirá entreter qualquer leitor que busque por um bom livro. Mesmo sem que haja o interesse em entender o racismo estrutural, Pretamorphosis funciona como boa literatura. A discussão de raça é um extra. O leitor recebe, então, dois em um, ao invés da anulação de um pelo outro.

Colocando em perspectiva com outra obra do mesmo autor, “Namíbia, não!”, acho que Aldri conseguiu fazer a mesma coisa, mas melhor no texto teatral, onde é mais sutil, sem citação direta. Mas não há demérito em Pretamorphosis.

Em linhas gerais, a novela de Aldri Anunciação é um livro excelente. Uma boa porta de entrada na discussão sobre raça, mas também uma boa ficção. Por meio dele, Aldri Anunciação segue como um dos autores brasileiros em atividade com maior domínio sobre o texto literário e que sabe chegar exatamente aonde quer chegar. 

Em determinado momento, me vi incomodado com a rapidez do livro (queria mais), visto que havia muita coisa para ser trabalhado. Mas, boa notícia, o livro terá continuação! Portanto, fico na expectativa de seguir navegando nas histórias do ex-branco Gregório.

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Editora Malê (2023).

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