Plumas, paetês e os invisíveis

Outros tantos episódios semelhantes ao do incêndio na fábrica de fantasias no Rio demonstram que condições indignas de trabalho fazem parte da realidade de milhares de trabalhadores no país.

Obra: “Costureiras”, de Tarsila do Amaral, de 1950 (fonte: acervo MAC-USP, foto: Elizabeth Kajiya, 2022).

Durante a semana, repercutiram as cenas dramáticas de trabalhadores vítimas de um incêndio que atingiu uma fábrica de fantasias para o Carnaval, localizada na zona norte do Rio de Janeiro.  Hoje, nas manchetes, leio que o Ministério Público do Trabalho instaurou inquérito para investigar as condições de trabalho naquele local.  A ação do MPT foi desencadeada a partir dos relatos de empregados e vizinhos da confecção, veiculados na imprensa, segundo os quais, haveria indícios de “trabalho degradante” com jornadas exaustivas, trabalhadores dormindo no local e presença de adolescentes entre os funcionários.

O caso da fábrica carioca ainda será objeto de investigação. Outros tantos episódios semelhantes demonstram, porém, que condições indignas de trabalho fazem parte da realidade de milhares de trabalhadores no país.  São homens, mulheres e, em muitos casos, crianças e adolescentes que, em detrimentos das normas legais, são obrigados a cumprir turnos extraordinários cansativos, em locais insalubres, sem higiene ou segurança. Pessoas robotizadas para as quais, consideradas as horas gastas nos deslocamentos em trens e ônibus lotados, não sobra tempo ou disposição para a família e o lazer. Não sobra tempo para viver. Uma “gente que ri, quando deve chorar. E não vive, apenas aguenta”, como canta Milton Nascimento, na sua tocante canção “Maria, Maria”.

Se para os homens o trabalho indigno já é pesado, para as tantas “Marias” ele se torna mais penoso.  Às péssimas condições laborais se somam a preocupação com os filhos, a falta de creches, o assédio no transporte público e no emprego, além do cansaço causado pela dupla jornada. Trabalhadoras que chegam em casa exaustas e são sobrecarregadas com trabalhos domésticos impostos por uma cultura machista, contra a qual, muitas delas, não conseguem se rebelar. Tarefas gratuitas e pesadas, para as quais não recebem reconhecimento ou sequer auxílio. Mulheres esgotadas, que sentem a vida esvair-se em uma rotina desgastante e injusta. Uma rotina invisível, traduzida num eterno “rir”, para não chorar. Num cíclico “aguentar”, calada e forte, suas dores diárias.

‘Os dados oficiais, contudo, trazem apenas um pequeno recorte dessa triste realidade.’

Mas há um aspecto mais sombrio quando o tema é o trabalho. Segundo dados do Observatório de Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas da OIT, entre 1995 e 2023, no Brasil, conforme dados do serviço de inspeção do Ministério do Trabalho e Emprego, foram resgatados mais de 61 mil trabalhadores em “condições análogas” à de escravos. Leia-se, trabalhadores sem salários ou benefícios legais; instalados em locais impróprios ou, até mesmo, em cárcere, entre outras circunstâncias desumanas e degradantes. Entre os resgatados, muitos são imigrantes em situação ilegal ou vítimas do tráfico de pessoas. Um contingente invisível que se torna alvo fácil para quem lucra com a escravidão moderna.

Risco de intoxicação química no garimpo ilegal; trabalhadores rurais vítimas de contaminação por agrotóxicos, vivendo em alojamentos precários e desumanos, sem acesso à água potável ou instalações sanitárias, entre outros itens fundamentais para um mínimo de dignidade, são parte do retrato extraído de algumas das operações de resgate realizadas pelos órgãos de fiscalização. Os dados oficiais, contudo, trazem apenas um pequeno recorte dessa triste realidade. Uma realidade que não atinge somente o Brasil, mas muitos países. Segundo dados da OIT, “o trabalho forçado na economia privada gera 236 bilhões de dólares em lucros ilegais por ano em todo o mundo”.

Crise climática, migrações, crescimento de governos autoritários, falta de legislação para enfrentar os desafios da inteligência artificial, entre outros componentes, tendem a aumentar as desigualdades na relação capital-trabalho. Aumentar a invisibilidade daqueles que produzem a riqueza e não têm consciência de sua própria força. Ou, exaustos, já não têm força para ter consciência. Uma gente que “não vive, apenas aguenta”.

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