Mesa com Marcelo Rubens Paiva e Luiz Felipe de Alencastro na Feira do Livro comentou sobre efeitos de 21 anos de ditadura militar na sociedade brasileira, além dos desafios de conta essa história em tempos de desinformação e saudosistas de um tempo deturpado.
A última palestra do Palco da Praça no dia de 6 julho, na Feira do Livro no Pacaembu, em São Paulo, reuniu dois nomes emblemáticos que testemunharam a ditadura militar brasileira (1964-1985) de diversas formas. O escritor e roteirista Marcelo Rubens Paiva, autor de livros como “Feliz ano velho”, “Ainda estou aqui” e “Do começo ao fim”, e o historiador Luiz Felipe de Alencastro, autor de obras como “O trato dos viventes”, e os volumes de “A História da vida privada no Brasil”, foram as atrações da mesa 60 anos do Golpe de 64. A mesa trouxe alguns detalhes de bastidores, discutiu sobre os impactos na sociedade sentidos até hoje, e abordou o desafio de contar essa história paras gerações futuras, em uma época de desinformação e da ascensão da extrema direita saudosista do regime. A mediação ficou por conta da colunista da Folha de S.Paulo Patrícia Campos Mello.
O que está acontecendo?
É praticamente impossível uma mesa abordar sobre o Golpe de 1964 e não se lembrar das recentes reações de grupos de direita, especialmente após 2014, com o então deputado Jair Bolsonaro homenageando o coronel Brilhante Ustra, um dos maiores torturadores do período, e populações de verde e amarelo nas ruas pedindo “intervenção militar” ou dizendo que, atualmente vivem em uma “ditadura”. Longe de assumir “lados”, os dois convidados trouxeram o estarrecimento da a onda saudosista e histérica desses grupos, que pintam um período que não condiz com a realidade. “Falam como se os 21 anos de ditadura militar tivessem sido um período de progresso, segurança e paz, uma realidade muito distante do que acontecia nos bastidores e que a mídia aqui era proibida de divulgar”, comenta Alencastro.
Quando indagado sobre esse cenário de “saudosistas da ditadura”, Marcelo suspira, fica em silêncio por alguns segundos e depois ri. Deve ter se lembrado, naquele momento, de cartazes pedindo AI-5 ou de manifestantes bradando frases de feito criadas por fake news. Talvez, sinta-se cansado. Passa a vida contando sua história, das tragédias que o regime provocou em sua família e em pessoas do seu convívio, mas, a desinformação parece um brucutu furioso em uma queda de braço com o conhecimento e, às vezes, parece estar vencendo. “Não sei o motivo, não sei se foi o potencial da internet, que deu voz aos imbecis”, comenta.
Na ocasião, uma figura barbuda, que se diz anarquista, tenta tirar o foco da palestra e faz perguntas que subestimam Rubens Paiva. Patrícia, claramente incomodada, diz “ainda bem que vivemos numa democracia e todos podem falar o que pensam, e que seja bem melhor assim”, assinala, recebendo palmas da plateia em seguida. Em outro momento da palestra, o mesmo homem dispara perguntas desconexas sobre “Feliz ano velho”. Rubens Paiva, sereno o atende. Um organizador a Feira interrompe a palestra alertando que as perguntas precisam ser enviadas por papel, conforme regras explicadas no início da mesa. No momento, uma pessoa da plateia grita cala a boca ao barbudo. O organizador reage: “Cala a boca não! Aqui vivemos num diálogo, no respeito, e definitivamente, não queremos que nada seja novamente resolvido no grito”, disse, também recebendo aplausos.
O Mundo Precisava Saber
Já na época, contou o pesquisador, exilados brasileiros buscavam denunciar ao mundo as torturas que aconteciam no país, ocultadas da Imprensa, para públicos estratégicos. Patrícia, inclusive, pediu para que Alencastro contasse mais sobre o período que escreveu como colunista para o Le Monde Diplomatique, caderno do jornal francês Le Monde, sob o pseudônimo de Julia Juruna, em que ajudou a compartilhar essas denúncias. Elas são tema do livro “Desportismo tropical: a ditadura e a redemocratização nas crônicas de Julia Juruna“, que o autor lançou este ano pela editora Tinta-da-China Brasil, selo editorial da Associação Quatro Cinco Um. “Era um jornal que circulava nas embaixadas. Era uma forma de denunciar ao mundo o que tentavam esconder aqui”, conta. Elas geravam impactos inclusive em negócios, já que algumas associações se recusavam a fazer parcerias com o governo militar por conta de seus princípios.
Marcelo também lembrou que seu pai, o engenheiro e político Rubens Paiva, também apoiava na divulgação dessas informações. Esse, inclusive, provavelmente deve ter sido o motivo da invasão de sua casa, no Rio de Janeiro, aos 11 anos, por forças militares.
Relatos
Patrícia pediu que Marcelo contasse sobre como foi essa invasão. Talvez por estar há décadas acostumado a rememorar essa história (que ele conta, inclusive no livro “Ainda estou aqui”, publicado pela editora Alfaguara neste ano), o escritor contou, numa fala mansa e serena, o que lembra daquele manhã 20 de janeiro de 1971. O pai, Rubens Paiva, a mãe, Eunice Dias depois, seu pai foi morto, mas só souberam dessa resposta certa de 40 anos depois, por meio da Comissão Nacional da Verdade. É uma dor comum a familiares de desaparecidos políticos – algumas até hoje não têm notícias do destino que seus entes tiveram, em meio a uma sucessão de impunidades e falta de esclarecimentos.
Alencastro lembrou algumas práticas de tortura comum na ditadura brasileira, como levar crianças e esposas para serem torturadas nas frentes dos homens. O acadêmico citou, inclusive, o caso de Carlos Alexandre Azevedo, que foi torturado no prédio do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Dops), na capital paulista, quando tinha apenas um ano e oito meses de idade, ao ser preso com a mãe em 1974. Carlos acabou tirando a vida em 2013, aos 37 anos, conforme noticiado pelo G1.
Sim, crianças foram submetidas a atos cruéis de violência, inimagináveis até hoje, e que lhe geraram traumas para a vida toda. São histórias que precisam ser lembradas”
José de Alencastro n’A Feira do Livro 2024.
O autor lembrou da força de sua mãe Eunice, que morreu em 2018, no dia que que completaram 50 anos da decretação do AI-5.
Ela poderia ter passado a vida toda reclusa como uma viúva, chorando, mas nunca baixou a cabeça. Não há problema quem preferiu ter seguido desta forma, afinal, cada um sabe a dor que tem e como lidar com ela, mas minha mãe preferiu seguir um outro caminho. Estudou e formou-se advogada especializada em direitos indígenas
Marcelo Rubens Paiva n’A Feira do Livro 2024.
Recontar a história
“O holocausto e o nazismo são frequentemente discutidos, por mais que fossem episódios pesados, mas precisam ser lembrados justamente para que não se repitam”, pontua Alencastro. Ele afirma que, no Brasil, houve avanços na literatura, a exemplo do trabalho feito por Elio Gaspari no começo dos anos 2000 com os cinco livros que abordam os bastidores do regime, ainda que com algumas ressalvas, pontua. Mas ele critica que ainda hoje, não se tem a dimensão real dos crimes cometidos no período. “Você você vê, por exemplo, um ministro chamando tudo isso de ‘movimento’. Não foi um movimento, foi um golpe”, pontua.
Para Rubens Paiva, que é roteirista de cinema, faltam mais produções para mergulharem na vida de personagens históricos desse período, como Juscelino Kubitschek, João Goulart, entre outros, com recortes e aprofundamentos necessários para trazer mais nuances desse período. “Já tentamos fazer alguns projetos para o streaming, mas não tivemos sucesso”, comentou.
No fim do painel, Alencastro e Rubens Paiva foram aplaudidos de pé. Na plateia, contemporâneos daquele tempo ajudavam a lembrar nomes e episódios, quando a memória dos palestrantes faltava, numa colaboração interessante entre público e painelistas.
Eu nasci em 1985, a poucos meses da redemocratização. Para mim, filho da primeira geração democrática, é sempre uma honra conhecer essas histórias, e leva-las, de alguma forma, para as gerações futuras, para que não se repitam. E em tempos de tantas desinformação, essa tarefa se faz ainda mais necessária.
Confira os livros dos autores da mesa ‘60 anos da Ditadura Militar’
Ainda estou aqui (Alfaguara, 2019), nesse livro de memórias, Rubens Paiva fala sobre a sua mãe, Eunice Paiva. Casada com o deputado Rubens Paiva, esteve ao seu lado quando foi cassado e exilado, em 1964. Mãe de cinco filhos, passou a criá-los sozinha quando, em 1971, o marido foi preso e morto por agentes da ditadura. Convivendo com a dor, formou-se advogada e ativista em prol defensora dos direitos indígenas. O autor também conta sobre a última luta da mãe, dessa vez contra o Alzheimer.
Desportismo tropical (Tinta-da-China Brasil, 2024), reúne os artigos publicados por Alencastro no Le Monde Diplomatique em 1976, sob o pseudônimo de Julia Jurina, em que abordava assuntos como as raízes violentas e o maquinário repressivo do nosso país, a participação dos Estados Unidos no Golpe de 1964 e a dependência econômica em relação ao mercado internacional.
Artigo muito bom! Os horrores da ditadura precisam ser lembrados para o bem das gerações futuras e para que essa página trágica da nossa história nunca mais se repita.
Excelente e necessário artigo! Urge lembrar nestes tempos de desinformação, divulgação de fake news e fundamentalismos, a necessidade de propagar informações que tragam luz aos fatos e mostre à população que há informações que precisam ser trazidas à público para combater a manipulação
Concordo com Rubens Paiva no que se refere na necessidade de mais obras, especialmente cinematográficas, sobre o período da ditadura militar. Seria muito bom ver traduzido em imagens obras literárias que abordam o tema mas que parecem que as pessoas pensam apenas como ficção ou não fazem a menor ideia de como eram esses ambientes, especialmente os de tortura, e quantas coisas e quais os temas eram discutidos nos altos escalões militares. Ótimo texto, ótimo recorte de um evento grandioso.
Sensacional o texto, extremamente coerente, bem escrito, mostrando uma grande verdade. Parabéns!