Revisitando as tradições e lendas judaicas, conto de horror de Esther Dantas mistura o imaginário místico de um povo e sua história de resistência.
As mãos calejadas de Sarah estavam cobertas de argila quando deu alguns passos para trás e observou o resultado do trabalho que teve nos últimos dias. A escultura de argila em formato humanoide tinha cerca de 1 metro e 60 centímetros de altura, o maior trabalho de argila que já havia feito. Agora, ela apenas devia esperar alguns dias para estar completamente seco e, assim, transformar a escultura em um Gólem.
Voltava do poço com um grande balde de água para se limpar após seu trabalho diário na pequena fazenda da família BenDavid, quando flagrou o irmãozinho, Noah, sentado observando a escultura. Sarah correu até ele e o encheu de cosquinhas, o que o fazia dar a risada mais amável que ela julgava possível existir.
“Esse é o golem que você disse que ia fazê?” perguntou ele depois da sessão de cócegas.
“É sim!” respondeu ela e acrescentou em tom de segredo: “Para proteger a família daquilo que você me falou.”
Com um pai doente e um irmãozinho pequeno, Sarah e a mãe ficaram responsáveis por cuidar e organizar os livros e textos sagrados que a família acumulou em gerações de economias. Torá, Talmud, Sidur, Tanach, Cabalah … apenas exemplos do que Sarah organizava e estudava, onde cultivava os seus conhecimentos e outros livros com contos de seu povo. Em seus afazeres encontrara um livro esquisito, com uma capa sem título, repleto de receitas que não julgava possíveis. Uma delas ensinava a criar um protetor de argila.
Apesar do cansaço a mais de construir um boneco de argila, aquela noite foi como muitas outras noites. A já rotina de explicar ao seu irmãozinho que os Dibbukim não estavam rodeando a fazenda se repetiu quando Sarah o colocava para dormir. Explicar noite após noite que os monstros não iriam até ali pois Dibbukim não tinham nenhum poder a não ser que se apoderassem de corpos humanos. Noah sempre ficava muito nervoso, dizia que eles estavam sim rodeando as plantações, observando eles, tramando. Sarah, então, fez a benção do Shemá com ele, para que ele se acalmasse e conseguisse dormir.
Alguns sóis se passaram e foi na sexta que Sarah percebeu que a escultura já estava suficientemente seca. Entre uma correria e outra para organizar a casa para receber o Shabat naquela noite, ela conseguiu se esgueirar entre os livros e encontrar a escrita correta do nome de Hashem (D-us) para dar vida ao Gólem. Um pouco antes da bênção das velas, correu para a frente da casa e pôs um papel com o Nome escrito na boca da escultura. Ela observou, esperando que algo mágico e fantástico acontecesse – um brilho bruxuleante, uma música vinda do além, uma voz misteriosa, um movimento sequer –, mas nada realmente aconteceu. A estátua, agora Gólem, estava como sempre esteve. Questionando-se o que havia feito de errado, entrou na casa quando a mãe a gritou para que acendessem as velas e dessem boas-vindas ao Shabat.
No final da noite de Shabat, Noah parecia ainda mais nervoso. Se coçava e falava que os Dibbukim estavam rondando a fazenda novamente. Sarah o levou para fora para confirmar que não havia nenhum Dibbuk nas plantações. Aproveitou para mostrar o Gólem e garantir que ele os protegeria se algo acontecesse. Já na porta da casa escutou um barulho curto de agitação em uma das plantações, um frio desesperador tomou conta dela. Tentou confirmar o que era, mas estava escuro e não via muita coisa além da silhueta das plantações e não ouvia nada além da canção dos grilos. Ela rezou para que fosse apenas uma raposa perdida, para que o irmão apenas tivesse uma imaginação fértil demais.
Sarah despertou sobressaltada naquela noite. Um forte clarão vermelho se alastrava do lado de fora da casa. As plantações! Saiu correndo, buscou um balde para apagar aquele fogo que ela não fazia ideia de como começou, quando escutou um grito. Outro grito e outro. O seu coração congelou quando identificou que um deles era de sua mãe. Abriu desesperada a porta da frente de casa quando viu que homens do vilarejo incendiavam as plantações, seu pai doente estava no chão e sua mãe gritava ao seu lado.
‘Ela viu mais alguns brilhos alaranjados no horizonte’
Um senhor carregava um livro e falava alguma coisa que Sarah não queria entender. Por quê? Era a única coisa que a sua cabeça conseguia formar. Ela viu mais alguns brilhos alaranjados no horizonte, outras fazendas estavam sendo incendiadas. Despertou do transe quando percebeu que um dos homens puxou a sua mãe e outro ia em direção a ela.
Sarah tentou se desviar para tentar ajudar a sua mãe que lutava sem muito sucesso e gritava desesperadamente. Mas agarravam-na pelos cabelos, seus cachos escuros sendo arrancados por mãos odiosas. Tentava se soltar e lutar, o ar saía de seus pulmões e começou a chorar. Esse é o fim. Não consegui ajudar a minha família. Vou morrer sem proteger Noah. Seu couro cabeludo ardia. Lágrimas brotavam de seus olhos. Ela escutava risos dos homens que a arrastavam. “Essa daqui deve ter mais um uso antes de morrer”, grasnavam eles entre risadas maldosas.
Quando o pânico tomava conta de seu coração, antes mesmo de Sarah piscar, ela estava livre e os homens estavam no chão. O Gólem ganhara vida para protegê-los. Por instinto, Sarah correu para levantar sua mãe e ajudar o pai a irem até a casa. Estava sendo salva ou era mais uma parte do pesadelo? Os invasores se afastaram assustados, um dos homens gritava “Bruxaria! Bruxaria imunda!”.
O Gólem os feria e os fazia correr em desespero. O homem que segurava o livro foi um dos últimos a sair, amaldiçoando a família: “Queimarão na fogueira! Judeus nojentos! Bruxos!” Aquelas palavras tomaram o acalento que começava a tomar conta de seu coração com a ilusão da segurança. Eles retornariam. Retornariam com ainda mais pessoas para matá-los. Terminariam o trabalho e queimariam todos eles.
Sarah chorava enquanto via toda as plantações pegando fogo. Toda a terra de gerações de sua família pegando fogo. Como foi tão estúpida? Ela devia ter agido antes, mas como saberia? Seu couro cabeludo ainda doía e abraçava a mãe que estava com o ombro machucado. O pai estava sentado na soleira da porta, fraco demais para ficar de pé.
Noah a abraçou chorando e ela não sabia a quanto tempo ele estava ali, nem o quanto havia visto. Mas agora o Gólem estava parado como um guarda na frente da fazenda e tudo pegava fogo. Se virou para o pai em busca de um porto seguro, mas o olhar do patriarca trazia apenas o peso da verdade: eles nunca conseguiriam escapar juntos. Um choro ainda mais desesperado saiu de seu ser.
Naquela noite de Shabat, as estrelas foram cobertas por fumaça e fuligem.
Conheça Esther Dantas
Esther Dantas Gomes é estudante do curso de Letras Vernáculas com Inglês na Universidade Federal da Bahia, é apaixonada por literatura, filmes, D&D e videogames. Escreve resenhas sobre livros diversos, contos nas horas livres e faz parte da equipe da Revista O Odisseu.