‘O castelo no espelho’, de Mizuki Tsujimura: um livro para fãs de lo-fi

Um best-seller no Japão, com mais de um milhão de cópias vendidas, O castelo no espelho é uma jornada fantástica que acompanha a história de Kokoro, uma aluna do ensino fundamental, que é convidada, por meio de um portal no espelho de seu quarto, a conhecer um castelo do outro lado.

A escritora japonesa Mizuki Tsujimura, autora de ‘O castelo no Espelho’. Foto: Reprodução.

Eu não vou entrar no mérito sobre a definição de lo-fi, porque o termo sofreu mudanças de significado ao longo dos anos. Vou me ater ao universo de playlists de música lo-fi no Youtube, que geralmente possuem a foto de uma garota estudando em um dia chuvoso, acompanhada de um gato, ou ainda, o desenho de um sapo feliz relaxando em uma lagoa, rodeado de amigos. Os vídeos geralmente possuem subtítulos que remetem à ideia de que aquela playlist vai te ajudar a focar nos estudos ou no trabalho, relaxar, ou fazer você se sentir mais positivo e tranquilo. Eu sou uma grande fã de playlists de lo-fi, o que significa que eu sou uma pessoa que anseia por foco e relaxamento, o que, por sua vez, significa que, em boa parte do tempo, eu sou uma pessoa estressada.

Lo-fi é, sem dúvidas, um tipo de música. Mas, pelo menos para mim, no contexto das famigeradas playlists do tipo “Chill / Relax / Focus”, é um tipo de música diferente daquela que eu ouviria com o simples intuito de apreciar música. E é sobre essa contradição que eu quero me ater: porque eu fico estressada, eu ouço lo-fi, mas, quando estou verdadeiramente relaxando, eu ouço outras coisas, bem menos “chill” (atualmente, minhas obsessões musicais são o álbum Denial is a river, da rapper Doechii, os funks do Mc Maha, e um gênero musical que eu descobri recentemente chamado “emo caipira” e que inclui sucessos como Harambe, da banda Mitocôndria, e Se isso te faz feliz, da banda Chococorn and the Sugarcanes). “O castelo no espelho” não é o tipo de livro que eu geralmente leria nas minhas férias, mas foi um ótimo livro para ler um pouco todos os dias de manhã, logo antes de começar a trabalhar. Primeiro porque ele tem aquele estilo de escrita moldado pela sociedade do desempenho, na qual nós temos o nosso foco disputado por inúmeras redes, todos os dias, o tempo todo. Então, é um livro fácil de ler, principalmente porque retoma, ao longo da história, explicações de situações que ocorreram no passado, para que você mesmo não tenha que procurar nas páginas anteriores, pensando “o que foi que aconteceu?”. Sempre que tem uma oportunidade, o livro situa o leitor no fluxo de causas e consequências que levaram a uma determinada situação, assim como nas intenções das personagens, que não comportam mal-entendidos.

Um best-seller pra chamar de seu

Um best-seller no Japão, com mais de um milhão de cópias vendidas, “O castelo no espelho” é uma jornada fantástica que acompanha a história de Kokoro, uma aluna do ensino fundamental, que é convidada, por meio de um portal no espelho de seu quarto, a conhecer um castelo do outro lado. O castelo é dirigido pela Senhorita Lobo, uma garota misteriosa com uma máscara de lobo, que informa Kokoro de que ela terá um ano para encontrar a “chave do desejo”, que está escondida dentro do castelo. Além de Kokoro, outros seis jovens ‒ Fuka, Aki, Ureshino, Rion, Masamune, e Subaru ‒ foram convocados ao castelo, atravessando os espelhos de suas respectivas casas. A chave do desejo possibilitaria à Kokoro ou a qualquer um dos jovens, a realização de um desejo, qualquer um. No entanto, eles não são obrigados a procurar a chave enquanto estão no castelo. Pelo contrário, podem usá-lo livremente, para conversar, jogar jogos, ou até mesmo para permanecerem isolados em seus respectivos quartos. A convivência ao longo do ano no castelo faz com que os jovens percebam que possuem algo em comum: nenhum deles frequenta a escola, cada um por um motivo diferente. Em todos os casos, percebe-se que cada um daqueles jovens passou por uma experiência negativa que provocou uma inadequação tremenda, a ponto de fazer com que não conseguissem mais ir à escola com os colegas do mesmo ano letivo.

‘A parte mais prazerosa da experiência no castelo parece ser o próprio convívio entre amigos que compartilham uma dor em comum’, escreve Nico Hirata sobre ‘O Castelo no Espelho’

É de se imaginar que jovens solitários e injustiçados pelo bullying tão presente nas escolas tenham um desejo que queiram realizar, ainda que seja um desejo de vingança. Mas nem mesmo uma oportunidade como essa faz com que a busca pela chave do desejo seja a prioridade de Kokoro e dos demais no castelo no espelho. A parte mais prazerosa da experiência no castelo parece ser o próprio convívio entre amigos que compartilham uma dor em comum. E, a meu ver, o que de fato cria o engajamento do leitor na leitura deste livro é o sentimento de cuidado que nós vamos nutrindo por cada uma das personagens, o que faz com que desejemos conhecer mais a fundo suas histórias e permanecer por perto, como se nós (leitores) pudéssemos também fazer companhia a elas, ou protegê-las de alguma forma. 

Não importa o quão cruel ou pesado seja o tema tratado nas vidas desses jovens, a escrita de Mizuki Tsujimura parece se valer dos mesmos esquemas que as playlists de lo-fi. Existe uma aura de leveza que faz com que a injustiça, a violência, e o abuso sejam palatáveis, para que não agridam a leitora sensível a gatilhos como estes. Isso me leva a crer que este é um livro inclusivo sob uma perspectiva neuro-divergente, uma vez que não são todos os livros que pensam na leitora altamente sensível. Por outro lado, talvez essa redução de ruído desagrade o tipo de leitora que busca sempre um “soco no estômago”, porque um soco no estômago é sempre um fator estressante, e, como eu já disse, este é um livro para fãs de lo-fi.

Eu não poderia fazer essa analogia com o lo-fi sem me debruçar, ainda que minimamente, sobre esse novo gênero literário que têm sido denominado de “ficção de cura” (do inglês, “healing fiction” ou “healing novels”). É claro que o grande estressor é o trabalho, o capitalismo, nossos devaneios de alta performance (nem tão nossos assim), e o excesso de exposição a conteúdo midiático e publicitário (o que, para mim, também configura “ruído”). E é claro que, por conta disso, o gênero de livros que propõem uma sensação de acolhimento, tranquilidade, e um certo estoicismo em relação às dores da vida, tem o potencial de vender igual pão quentinho. Mas eu não acho que deveríamos perder nosso tempo criticando a ficção de cura por não querer nos dar socos no estômago. A ficção de cura não veio com o propósito de desbancar os livros mais viscerais. Ela veio de uma necessidade de leitores que precisam de um acalento, porque, afinal de contas, o maior soco no estômago de todos é a própria vida. 

O que você acha? Ficção de cura: alienação ou descanso?

O Castelo no Espelho, de Mizuki Tsujimura
Editora Morro Branco, 2024
Tradução de Jefferson José Teixeira
Romance, 448 pp.
R$ 44,00

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