O ato final de Yukio Mishima

100 ANOS DE YUKIO MISHIMA: Como parte de uma geração de artistas que produziram no pós-guerra, Yukio Mishima apresentou talento notável e uma personalidade complexa. Suas contradições tornam-no uma figura misteriosa e difícil de digerir.

O escritor japonês Yukio Mishima (Foto: Reprodução).

Não se trata de uma mera aleatoriedade o interesse de Yukio Mishima pelo teatro kabuki e pela morte. O primeiro, um tipo de encenação típica japonesa, fundada por uma mulher e que passou a apresentar homens em papéis variados, inclusive femininos, é marcado por seu exagero, dramaticidade e por sua sensualidade. Os atores utilizam maquiagem pesada, que lembram máscaras, e há, de modo geral, uma atmosfera fantasiosa, ao mesmo tempo em que as encenações retratam o cotidiano das classes populares, opondo-se às representações típicas da aristocracia. Trata-se, portanto, de um tipo de arte que representa um Japão pop, mas não ocidentalizado, estilizado, mas ainda ligado à vida real; contrastes que encontramos na vida e obra de Mishima, que parece ter dramatizado a própria vida em direção a seu ato final, sua morte auto-infligida. 

Após o lançamento de seu primeiro romance, formou o Tatenokai, a Sociedade da Armadura, apenas uma de suas incursões por um universo de homossociabilidade militarista, politicamente engajado e marcado por um nacionalismo exacerbado. Como parte de uma geração de artistas que produziram no pós-guerra, Mishima apresentou talento notável e uma personalidade complexa. Suas contradições tornam-no uma figura misteriosa e difícil de digerir. Como exemplo máximo de sua vasta gama de influências, bem como de seu grande projeto estético teatral, que revela-se não somente nas peças de teatro, mas em romances, contos e excêntricos ensaios, temos a tetralogia O mar da fertilidade,  formada pelos livros Neve de primavera (1969); Cavalo selvagem (1969); O templo da aurora (1970) e A queda do anjo (1971), este último entregue a seu editor na manhã do dia 25 de novembro de 1970, quando os membros do Tatenokai tornaram refém o comandante do quartel-general das Forças de Autodefesa do Japão em uma tentativa de golpe de Estado fracassada. 

Como parte de seu ato final, a produção da tetralogia ocorreu em um momento de explosão criativa, caracterizando-se por  cobrir um grande período de tempo, começando em 1912, pouco após a guerra entre Rússia e Japão, e terminando nos anos 1970, cobrindo desde o ascensão do Japão Imperial, passando pelos desafios da Segunda Guerra Mundial e culminando no surgimento de um Japão capitalista, voltado ao consumo. O personagem Shigekuni Honda é o único que permanece ao longo da narrativa, representando um ciclo de reencarnações cuja base é a religiosidade budista e o conceito de transmigração de almas.

“O fim parece ser também uma das obsessões de Mishima”, Kaio M Veloso sobre Yukio Mishima

Indissociável da morte, ao menos em uma visão essencialista, o fim parece ser também uma das obsessões de Mishima. Para um escritor que só desenvolvia suas histórias após ter uma ideia muito clara de como iria finalizá-las, não espantaria a hipótese que, para Mishima, o fim de sua vida, como já pontuado, um tanto quanto teatral, antecede os próprios eventos que o levaram a tal conclusão, um ritual seppuku, forma de suicídio ritualístico que ficou conhecido por ser praticado por guerreiros samurais. Ao que se sabe, antes de Mishima, ninguém havia morrido por seppuku até os dias finais da Segunda Guerra Mundial. Trata-se de um ato simbólico condizente com suas ideologias e visão quanto ao tradicionalismo japonês, antagonizando com um Japão que se modernizava e se afastava de certos valores predominantes outrora. 

Outro ponto que destaco como parte da constelação de sua persona é a homossexualidade, tema recorrente em sua obra literária e presente em sua vida pessoal, ainda assim, aparentemente tão distinto de sua personalidade e tragetória de vida. Com seu pendor militar e ligado à extrema direita em seu país, pouco em Mishima parece apontar para uma vivência queer, contracultural, indisciplinar, como usualmente se observa em personalidades sexualmente dissidentes na vida cultural e intelectual do ocidente. Sua disciplina, a qual podemos entender como fruto da criação paterna, afasta qualquer imagem rebelde aos moldes que aprendemos. Sua rebeldia era outra, se expressava ao se opor aos caminhos que seu país tomava e ao olhar para o passado japonês. 

Psicanaliticamente, podemos pensar em uma pulsão de morte que se destaca não como representante de autodestruição contrária à autopreservação, mas como equivalente a Eros em uma existência tão criativa quanto disciplinar. Fato é que temos em Mishima um pensamento político atrelado a um pensamento estético, onde o militarismo dava as mão à homossexualidade/ homossociabilidade; onde o sublime residia em cenas de violência e sobretudo, na morte, não em frases célebres que tão costumeiramente marcam o começo de livros clássicos, mas sim, de épicos finais. 

1 comentário em “O ato final de Yukio Mishima

  1. Heraclides Veloso Marques Responder

    Parabéns Kaio
    Excelente o texto ,, uma junção de história, cultura, curiosidade, conhecimento Gerais e principalmente uma merecida homenagem Yukio Mishima.

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