‘No Exílio’, de Elisa Lispector, e a Roda Viva da história

No Exílio, de Elisa Lispector, é uma aposta interessante da Editora Record no momento em que se discute o lugar da chamada autoficção na agenda da teoria literária.

A autora Elisa Lispector (Instituto Moreira Salles)

“Sim, a América é longe, muito longe, para quem vem pela interminável estrada de reveses”

Elisa Lispector em ‘No Exílio’ (p.18)

A ponte complexa entre ficção e realidade é lugar de debate, ainda hoje, na literatura. Por isso, No Exílio, romance escrito por Elisa Lispector, é uma aposta interessante da Editora Record no momento em que se discute o lugar da chamada autoficção na agenda da teoria literária. Lançado pela primeira vez em 1948, o livro chega às nossas mãos por meio do Selo José Olympio, cuja proposta é revisitar clássicos produzidos no Brasil e no mundo, nos oferecendo a já conhecida qualidade editorial que tornou a Record tão aclamada no mercado. 

Com apresentação de Benjamin Moser e prefácio de Márcia Algranti, sobrinha de Elisa, o livro chega a sua quarta edição com fôlego renovado, já que apresenta discussões que ainda pairam, fantasmagóricas, sobre a história do Brasil e do mundo. 

ANTES DE TUDO, UMA BREVE APRESENTAÇÃO

Quando busquei a leitura de No Exílio, fui guiada pela irremediável curiosidade de conhecer um pedacinho mais da família Lispector. Como fã de Clarice, vi-me impelida a ler Elisa na busca da sombra da irmã caçula, embora a obra das duas esteja, como destacou Moser na introdução, em pontas opostas de uma mesma ponte. Fica claro para nós que, assim como Clarice, Elisa buscou a literatura como lugar de refúgio para seus traumas e dores, mas imprimiu um estilo muito próprio a sua escrita. Por isso, é necessário visitar a sua obra sem peso sobre os ombros para que qualquer comparação não contamine o olhar crítico acerca do texto e nenhuma injustiça seja cometida em nome do desejo de estabelecer um pódio para as irmãs Lispector. Sendo assim, busquei distanciar-me de Clarice para ler Elisa e viver a experiência de conhecer uma autora premiada, que escreveu, dentre outras coisas, os romances Além da Fronteira e O muro de Pedras, que venceu o prêmio José Lins do Rego e o prêmio Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras. Seu livro de contos, O Tigre de Bengala, foi agraciado com o prêmio Luísa Cláudio de Souza, do PEN Clube do Brasil. Elisa escreveu, ao todo, 12 obras e consagrou-se como autora e jornalista, embora relegada ao ostracismo, assim como muitas autoras que não furam a bolha do cânone machista, branco e heteronormativo brasileiro. 

A SAGA DE UMA FAMÍLIA EM BUSCA DE REFÚGIO

A Família Lispector: Elisa Lispector é a segunda da esquerda para a direita e Clarice Lispector está ao meio. (Foto: Reprodução Blog da BBM, USP)

Já no primeiro capítulo, somos transportados para o ano de 1948, momento em que o tão sonhado Estado de Israel é finalmente estabelecido. Lizza, que acabara de sair do sanatório, pega o trem de volta para casa enquanto reflete sobre a vida e mergulha em suas lembranças tenras. Nesse momento, conhecemos sua família, formada por Phinkas, seu pai, Marim, sua mãe e suas irmãs Ethel e Nina. Fugindo dos pogroms, enfrentam o rigoroso inverno Russo para chegar a América e finalmente salvar-se da perseguição que os assola. Utilizando-se do fluxo de consciência característico da literatura introspectiva na qual estava inserida, permite que o leitor conheça os mais íntimos pensamentos dos personagens e é nesse momento que a leitura dificulta-se, já que o narrador acaba perdendo as rédeas do texto e os personagens ganham vida própria, nos confundindo. Ao mesmo tempo que estamos acompanhando o olhar de Lizza que, nesse momento da narrativa, é uma criança, somos conduzidos às divagações de Phinkas e, ao mesmo tempo, as de Marim. Ethel e Nina tornam-se meras coadjuvantes, quase como fantasmas das lembranças da irmã mais velha. Nesse caso, há um uso ineficaz do papel do narrador observador, que não dá conta de administrar todos os personagens e acaba levando o texto para lugares complicados e prejudicando a linearidade da narrativa. Vez ou outra, ocorrem cortes bruscos e nos perdemos no tempo e no espaço. Quando damos conta, muito tempo passou e as meninas que eram crianças algumas páginas antes, tornaram-se adultas rapidamente e sem que pudéssemos compreender os fatos que envolveram alguns dos acontecimentos mais importantes da narrativa. A leitura nos faz sentir que as lacunas da memória da narradora são materializadas no texto e ocorrem como apagões que, longe de aguçar a curiosidade, prejudicam a compreensão e nos leva àquele movimento chato de voltar uma ou duas páginas para ter certeza de não ter perdido nada. Além disso, as descrições excessivas de ambientes e mesmo de pessoas, sequestram a emoção do leitor e tiram o foco do tema da narrativa e das agruras sofridas pela família. No entanto, o ponto alto do texto é a forma poética e assertiva com que a narradora usa as palavras, nos oferecendo trechos memoráveis, tais quais:

“Em todas as suas manifestações, a vida se renova constantemente, milagrosamente. E tudo isto ocorre à margem das leis dos homens. Apesar da maldade dos homens” (p.25) 

A ideia de movimento evocada no trecho acima faz-se presente a todo momento e evoca o desejo dos personagens, principalmente de Lizza, de mudança, mas também torna o leitor participante do processo de exílio da família. A impressão é sempre que nós, tal qual os personagens, estamos em exílio, em trânsito, seja no sentido lato do termo ou no sentido metafórico de mudança interna, de pensamentos, de atitudes, de personalidade. A ruptura causada pelo trauma da perseguição e da guerra causou em cada membro da família uma transformação radical com a qual tiveram que lidar. As marcas físicas da doença afetaram Marim e a fizeram desejar a morte, enquanto a dor de sair de sua terra natal para um lugar desconhecido tornaram Phinkas um homem sem vivacidade. Lizza precisou amadurecer abruptamente e, por isso, tornou-se endurecida, como tantas vezes afirma. Nos identificamos com as dores e dissabores de cada um, ainda que não tenhamos vivido nada parecido com um exílio ou com a perseguição sofrida pelos judeus. É comovente perceber como somos frágeis e falíveis diante da monstruosa sanha sanguinária dos homens e da sua sede de poder materializada em guerras.  

As descrições históricas dos conflitos que afetaram diretamente os judeus no século passado são, para além do pano de fundo da narrativa, um elemento atrativo para quem, como eu, se interessa, minimamente, pela história. Aqui, vemos a veia jornalística de Elisa manifestar-se e notamos como, além de partícipe ativa desses momentos, ela foi uma cronista bastante arguta dos fatos. As páginas finais do livro são dedicadas a tratar sobre o crescente antissemitismo na Europa e sobre a perseguição cada vez mais feroz de judeus ao redor do mundo. É Phinkas que, como um leitor voraz de jornais, dá conta de inserir no texto esses elementos e consumido pela dor e a desesperança de ver o seu povo maltratado, “adormecera para não mais acordar” (p.232).

No Exílio é uma excelente forma de conhecer a obra de Elisa Lispector e um ponto de partida interessante para quem se interessa por literatura e história. No entanto, não espere apenas deleite, pois o texto mostra-se difícil e árido, apesar da poesia. 

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1 comentário em “‘No Exílio’, de Elisa Lispector, e a Roda Viva da história

  1. Dauana Pinheiro Responder

    Excelente resenha! Fiquei curiosa para ler o livro. Tu és uma escritora maravilhosa, Carolina. Parabéns!

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