Não sei se cheguei a cartografar algum ladrilho dessa cidade: Reflexões a partir d’O Mapa de Casa’, de Jorge Augusto

O escritor e colunista da revista O Odisseu, Paulo Zan, escreve sobre a cidade de Salvador a partir de reflexões despertadas pela leitura de ‘O Mapa de Casa’, de Jorge Augusto.

O poeta Jorge Augusto, autor de “O Mapa de Casa” (Círculo de Poemas, 2023).

Salvador sempre fez parte da minha vida. É um “sempre” marcado, sem demagogia. Tinha eu três anos quando pisei aqui pela primeira vez. Ainda sem nem imaginar que um dia viveria por essas bandas.

Por muito tempo, desde que moro aqui, estranhei essa cidade. Ou ela me estranhou. Meu jeito de usar certas letras e gírias. Até no nome das coisas. Quem é daqui fala “saco” ou “saco plástico”. Eu sempre chamei de “sacola”. O meu mingau de milho, aqui é canjica. E a minha canjica aqui é mugunzá, palavra que eu só tinha ouvido algumas vezes na vida.

Embora eu não seja de outro estado, “o interior”, como se chama qualquer cidade mais afastada que não seja recôncavo, Feira, Ilhéus ou Porto Seguro, o meu interior fica bem distante. São quase 600 km que separam a minha infância da vida adulta.

Sempre vivi meio em trânsito. Entre o Jiló, povoado onde nasci, Rio de Contas e Livramento. E, depois de certa idade, também Salvador. Até os 7 anos morei no Jiló. Depois em Rio de Contas por pouco tempo, menos de dois anos. Depois, dos quase 9 até os 17 anos em Livramento. E dos 17 até então (quase 25), em Salvador. Porém, isso tudo foi entre muitas idas e vindas de todos esses lugares. E ainda muitos bairros e escolas diferentes.

Independente de qualquer coisa, é muito tempo em Salvador para ainda me sentir estranho aqui. Mas me sinto.

Na dedicatória que Jorge Augusto me escreveu, ele disse que esse livro, O mapa de casa, é um mapa que ele criou para entrar e sair de quem é. E disse esperar que eu tenha meus próprios mapas. Desde então, e com a leitura da poesia de Jorge, tenho buscado traçar essas linhas.

No meu livro, que ainda não foi publicado mas que sairá pela Editora Urutau espero que ainda esse ano (2024), chamado “A história de uma busca”,  o poema que dá título ao livro tem um indício desse desejo de, senão encontrar, forjar — no sentido da forja do ferreiro, o fazer, construir — esse pertencimento, com pinceladas do bairro que habito, Resgate. É um lugar que me acostumei a viver. Tranquilo, diurno, silencioso. Porém, com pessoas que me assombram um pouco. Não sei muito bem se no resto da cidade é assim, mas o que os meus ouvidos captam nesses quase 8 anos aqui são pessoas um tanto encerradas em si mesmas.

Jorge viveu uma infância em Salvador. E talvez ele tenha captado muita coisa ruim também, porém, com os anos, foi construindo o seu imaginário desse bairro apelidado tão lindamente de Liberdade em que ele construiu a sua identidade.

Salvador são muitas. Assim como as vivências são muitas. E a poesia de Jorge vai captando e abrindo ruas. Não com mazelas, como mostram os jornais. Não só isso. Mostra a vida acontecendo. Mostra pessoas criando senão palavras, sentidos. “esse efeito intransitivo/ que a língua ganha no/ exercício de falar sempre/ pra dentro ou pra nenhum/ destino é quiçá para evitar/ os afetos e seus desfechos/ o luto por laços desfeitos”

As ilustrações de Jeferson Bispo desenham de outra forma tudo isso. Mas não deixam de ser certeiras. Quando, por exemplo, adiantam o que vai acontecer quando a “rua cadê o homi” topar com “virgílio” num “baba a porrada”.

Não sei se cheguei a cartografar algum ladrilho dessa cidade. Mas começo a chamar as coisas por outros nomes.

Tenho praticado ouvir a cidade. Tentando, com isso, rabiscar minhas rotas de fuga. Espero assim poder viver coisas impactantes mas que não mostrem apenas o lado estranho desta cidade, que me é sim ainda muito estranha. Quero poder desenhar uma esquina onde eu sente num bar e tome uma pinga ouvindo umas figuras como as que aparecem no bar de seu Manoel.

“Charéu com chapéu na cabeça”, tomando todas e explodindo. Um verdadeiro “nero dos subúrbios”. “sem império, sem deus e sem futuro.”

Já consigo imaginar!

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