Obra fundamental para os estudos sobre o movimento LGBTQIAPN+ no Brasil, Devassos no Paraíso, de João Silvério Trevisan, vira o samba-enredo Muito Além do Arco-íris.

Se, no ano passado, as principais escolas de samba tanto do Rio como de São Paulo trabalharam obras literárias como influência para o desfile, este ano tem livro no carnaval novamente! Em São Paulo, a Estrela do Terceiro Milênio, escola que desfila no segundo dia do desfile, na madrugada de sábado para domingo, leva a obra Devassos no Paraíso, de João Silvério Trevisan, para o carnaval.
O enredo toma como ponto de partida o livro histórico de Trevisan para celebrar a diversidade e a resistência do movimento LGBTQIAPN+ no Brasil. O escritor paulista, autor de diversos títulos e vencedor do Prêmio Jabuti, é uma verdadeira entidade do movimento e celebrado como um dos maiores intelectuais do Brasil.
‘Devassos no paraíso’ é ‘um dos clássicos sobre História da dissidência sexual e de gênero no Brasil’, diz pesquisador da obra e mestre em ciência sociais pela UNIFESP
Atualmente, até podemos dizer que existem muitas obras que investigam aspectos da história LGBTQIAPN+ no Brasil e no mundo. Mas, nem sempre foi assim. Publicado originalmente em 1986, Devassos no Paraíso, ensaio-antropológico de João Silvério Trevisan é uma obra pioneira que passou por algumas ampliações ao longo dessas quase quatro décadas.
Para o pesquisador e mestre em ciências sociais pela Unifesp, Émerson Rossi, a obra é um clássico e João Silvério Trevisan pode e deve estar ao lado de figuras como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda como um dos intérpretes do Brasil. À revista O Odisseu, ele disse:
‘Devassos no paraíso’ é uma obra central na compreensão da História da homossexualidade (masculina) no Brasil e da comunidade em geral. Uma obra pioneira lançada inicialmente na década de 1980, uma época com pouca produção nacional sobre homossexualidade, principalmente, a partir de um olhar investigativo científico. A obra é um dos clássicos sobre a História da dissidência sexual e de gênero no Brasil, ela foi revista e ampliada e apesar da passagem do tempo e toda especialização universitária que veio depois, tende a permanecer. E, como cientista social, eu a interpreto e classifico como uma interpretação do Brasil, que merece um lugar nas nossas leituras sobre o país ao lado de ‘Casa grande e Senzala’, de Gilberto Freyre; ‘Raízes do Brasil’, de Sérgio Buarque de Holanda e outras grandes obras do pensamento social; só que compreendida a partir de sua especificidade – ter sido realizada fora do campo universitário, não como requisito para uma titulação; por um desviante da heteronorma sobre uma população de desviantes da heterossexualidade. Isto é, fora dos padrões narrativos e explicativos comumente preconizados pelas próprias ciências humanas até décadas atrás.
Émerson Rossi – Mestre em ciências sociais pela UNIFESP
‘Muito além do arco-íris’: Diversidade de gênero e sexualidade será celebrada no carnaval 2025
A escola Estrela Terceiro Milênio não será a única a celebrar a diversidade de gênero e sexualidade no carnaval 2025. No Rio de Janeiro, a escola de samba Tuitui sairá com o samba-enredo Quem tem medo de Xica Manicongo, que resgata a história da primeira travesti não indígena documentada na história do Brasil e que foi condenada pelo Santo Ofício na cidade de Salvador em 1591.
Para Rossi, ver o tema da defesa dos direitos LGBTQIAPN+ no carnaval é fundamental por ampliar o debate:
É muito importante levar o tema LGBTI+ para o carnaval e para todo lugar que ele possa ser representado e discutido com a seriedade que merece. Afinal, trata-se da vida das pessoas, das suas subjetividades, das suas histórias presentes e passadas. De romper o silêncio heterocentrado em torno de existências, afetos e vivências que apesar de cada época ter nomeado de um jeito sempre estiveram aqui e provavelmente estarão no futuro, seja ela qual for. Quando uma escola de samba tematiza o assunto, ela mostra e canta para milhares de pessoas em um sambódromo e milhões pela Televisão uma narrativa que muitas vezes está restrita a um nicho que se interessa, ela difunde, repercute na imprensa e no debate público. Também acrescento a importância dos blocos de carnaval, que ao seu modo também atualizam o discurso e a fantasia das pessoas, geram espaço de sociabilidade e afeto, serviços e renda para muitas pessoas LGBTI+
Émerson Rossi – Mestre em Ciências Sociais pela UNIFESP
Nesse momento, especificamente, é super importante, já que estamos vendo, em todo o mundo, um ataque sistemático da extrema direita contra os direitos da população LGBTI+. Nos Estados Unidos, por exemplo, não se reconhece mais a identidade de gênero das pessoas em documentações oficiais, um retrocesso depois de décadas de luta. Sobre isso, Émerson completa:
Esta tarde (27), pouco antes de responder a O Odisseu, eu estava escrevendo reflexões sobre a afirmação gay para o blog do Museu Bajubá, da qual sou conselheiro, e nessas reflexões eu apontei que ainda estamos aqui apesar de muitos riscos pelos quais passamos constantemente, inclusive o de morte, e que mesmo fazendo muitas coisas precisamos articular essa afirmação de identificação com pertencimento, fraternidade, consciência coletiva e alinhamento entre nós, porque infelizmente o cerceamento das liberdades conquistadas está à espreita em todo lugar, seja ele material ou virtual.
Para terminar, deixo um pensamento atribuído à filósofa Simone de Beauvoir, sobre os direitos das mulheres, que deve ser estendido a qualquer minoria, resume bem nosso momento atual e alerta:
“Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”.
Émerson Rossi – Mestre em Ciências Sociais pela UNIFESP.
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Émerson Rossi é Mestre em Ciências Sociais pela UNIFESP e pesquisa sobre a obra Devassos no Paraíso. É secretário de relacionamento e projeto do Museu Bajubá e coordenador da Estação São Paulo do museu, a partir de 2025 compõe também o conselho da instituição.

