‘Lia’, romance de Caetano Galindo, não tem nada a dizer e por isso diz tudo

Questões do intrínseco de nossa carne-mente são a matéria para construção de “Lia: Cem Vistas do Monte Fuji”, romance de Caetano Galindo.

O autor brasileiro Caetano Galindo. Foto de Sandra M. Stroparo (Reprodução).

Se você é um leitor atento da literatura contemporânea e que consome conteúdos sobre livros na internet, certamente já ouviu a frase: “precisamos falar deste livro”. Geralmente, a necessidade não é falar do livro, mas sim daquilo que o livro tem a dizer.

E o que os livros contemporâneos têm a dizer? A crítica social é um ponto muito pertinente na produção literária de nossos tempos. Não falo isso enquanto crítica, uma vez que não sou um daqueles que diz que o discurso social esvazia a literatura. Mas é fato que o autor de hoje tem algo a dizer e esse algo, geralmente, faz referência ao momento histórico que vivemos. 

“Lia”, romance de Caetano Galindo, não tem nenhuma denúncia explícita (embora seja possível essa leitura), tampouco um fato inédito sobre a modernidade. Não há nada urgente em “Lia”. Isso pode causar estranhamento repentino no leitor que está acostumado com uma narrativa mais intensa que dialoga muito com o caos da época.

Afinal, quem é Lia?

Vamos por partes. “Lia” é um romance fragmentado. O próprio Galindo já explicitou que os capítulos curtos surgem inicialmente enquanto pequenos fragmentos que ele publicava como contos que se interligavam na personagem “Lia”. Esses pequenos textos foram reunidos neste exemplar e apresentado como um romance.

Bom, há muitos debates sobre isso constituir um romance ou não, mas isso deixo aos acadêmicos. É fato que, tal qual um romance, encontramos o desenvolver de uma personagem em cenários diferentes e em diferentes momentos da vida. A narrativa, em 99 capítulos, nos apresenta diversas faces de Lia.

E quem é essa mulher? Lia é Lucília, personagem de quem sabemos pouco do ponto de vista biográfico e ordenado. Sabemos que, em determinado momento, Lia é mãe, que ela foi uma criança curiosa (como todas), que mora em Curitiba, que ela teve romances complicados, mas que também amou intensamente.

Lia é uma mulher ordinária. Não há nada que diferencie a sua história da história de qualquer outra mulher. Os pontos de virada em sua vida não são, necessariamente, grandes acontecimentos na vida de uma personagem extraordinária. Na verdade, esses pontos de virada são momentos que poderiam acontecer com qualquer pessoa. 

Sendo assim, Lia é conhecida/desconhecida do leitor o tempo inteiro. Conhecemos seus segredos íntimos, seus sonhos, suas dores. Assistimos momentos de transformação de sua vida, mas não sabemos exatamente quem é essa mulher. Essa dialética de desconhecimento e aproximação criam uma personagem sempre envolta numa névoa sedutora de mistério. 

Com isso, o livro consegue te deixar intrigado sobre a personagem. As descrições da personagem (que nunca se apresenta por si) são belíssimas. Galindo a envolve numa aura de beleza que vem da sua espontaneidade, sua curiosidade quanto ao mundo e seu desejo de experimentar vivências inéditas e transformadoras.

Essa também é uma forma de criar conexão com os leitores. As experiências de Lia não são únicas, como já mencionado. Portanto, vez por outra é capaz do leitor se pegar sorrindo ao perceber que uma experiência que pensávamos ser individual na verdade pertence ao léxico de emoções que constrói a subjetividade humana.

O que o livro tem a dizer?

Me parece pertinente problematizar essa questão uma vez que a literatura contemporânea vem construindo uma tradição do livro “importante”. O livro importante é aquele que tem algo a denunciar. Isso, por si só, não garante caráter de qualidade, tampouco é demérito. É uma característica na obra. 

Mas talvez haja, neste leitor contemporâneo, uma impaciência com narrativas como “Lia”. Porque nossa vivência com os livros vem sendo pautada pelo grau de relevância sociopolítica. Eu acho que o tempo pede essa escrita. À primeira vista, pode parecer que “Lia” fala de um lugar de alienação e privilégio: quem tem tempo para ler sobre uma personagem que descobre o prazer de dormir nua?

Esse discurso recorrente me incomoda bastante. As causas sociais são importantes, mas existe algo em nossa humanidade que nos reúne: as conexões sensoriais, a observação da natureza e o susto quanto à própria vida. Questões como essa, do intrínseco de nossa carne-mente, são a matéria que constroem “Lia”, um romance que tem como norte a vida em suas belezas e desastres.

Breves comentários sobre a forma

Já no início do livro, somos apresentados à metáfora de um romance enquanto um filme. As duas mídias, o livro e a tela, evocam uma narrativa que nos é apresentada por meio de imagens. A imagem sobre  a tela é o contato direto com a visão, mas o romance evoca uma série de imagens mentais.

Neste aspecto, o narrador é a câmera, o responsável por trazer à nossa mente essas imagens de que falo. A presença de uma câmera pode ser bem demarcada, como também pode ser invisível. Se “Lia” fosse um filme teria quase sempre o segundo tipo de câmera. 

O narrador busca ser o mais invisível possível na busca por destacar a subjetividade da personagem em diversos pontos de vista. Somos apresentados a depoimentos sobre Lia e cenas descritas com precisão quanto ao espaço numa tentativa de evocar uma imagem precisa em sua mente.  

Assim, “Lia” poderia funcionar como um documentário: observamos na tela o desenvolver de uma mulher em toda a sua complexidade, em suas contradições, em suas dores e delícias. O resultado final é a absorção de uma personagem cativante e que fica com o leitor. Não será surpresa para mim caso algum de vocês diga que se apaixonou por Lia. Na verdade, poucos personagens podem ser tão apaixonantes. 

Durante toda a narrativa, vamos encontrando algumas características que acompanham Lia desde a sua infância até a vida adulta. O senso de humor, a dramaticidade. O leitor fica hipnotizado ante essa mulher que está sempre disposta a levar toda situação aos extremos para se manter fiel a si mesma. 

Os capítulos curtos ora conseguem funcionar como contos, ora soam confusos demais. Acho que o que mais me incomoda neste tipo de forma narrativa, de cortes frequentes em intervalos curtos de texto, é justamente a sensação de cansaço que eles geram. Você sente que leu muito quando na verdade leu pouco. Isso quer dizer que “Lia” é um romance que tem um ritmo lento e que exigirá paciência de você.

Além disso, em 99 capítulos curtos fica muito difícil trazer um aspecto novo da personagem. Quase sempre Galindo consegue fazer isso, mas não sempre. Alguns capítulos são dispensáveis. Outros são extraordinários. 

Mais para o fim do livro, o autor nos conduz a enxergar a realidade que é a vida: uma série de absurdos que se sucedem sem que tenhamos uma explicação convincente. Quando pensamos por essa perspectiva, conseguimos perceber que esses eventos rotineiros que são narrados na vida de “Lia” não tem nada de ordinário e que, na verdade, nada na vida é ordinário.

No geral, o livro se sustenta enquanto uma obra capaz de gerar reflexões profundas a partir do cotidiano extraordinário que nos envolve. Terminei o livro reflexivo sobre o milagre da própria existência, milagre esse que raramente observamos na busca pelo “acontecimento” capaz de romper o cotidiano. Certamente é uma das minhas leituras favoritas do ano.

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