‘Jacinto Morto’: Uma metáfora de tempos extremos

A dramaturgia de “Jacinto Morto” sugere uma espécie de distopia dos tempos extremos, que também pode funcionar como uma possível releitura da nossa atualidade, cada vez mais distópica e atingindo níveis inimagináveis e absurdos.

Rapha Gouveia e Cícero Locijá em cena na dramaturgia ‘Jacinto Morto’/ Foto: Denni Sales.

Tema de muitas obras de arte e literatura ao longo dos séculos, a história de Jacinto continua atravessando as esquadras do tempo. Esse mito que simboliza a beleza efêmera, o amor e a perda, ainda reverbera e inspira, dessa vez no espetáculo “Jacinto Morto”, com dramaturgia e direção de Robson Crusoé, tendo sua estreia em Salvador (BA), em 2023 no teatro do Goethe Institut e retornando aos palcos em 2024 na Sala do Coro. 

No mito de Jacinto, que era profundamente amado por Apolo, e com quem passava os dias realizando muitas atividades, um inesperado incidente interrompe essa ligação. Durante uma competição de arremesso de disco, Apolo acidentalmente atinge Jacinto, resultando em sua morte. Outra versão do mito sugere que o deus do vento, Zéfiro, também nutria um amor profundo por Jacinto e, tomado pelo ciúme do amor entre Apolo e Jacinto, desviou o curso do disco para que ele atingisse o jovem mortal.

Em “Jacinto Morto”, a encenação funciona como uma metáfora do aprisionamento e da nossa atualidade: na sinopse, dois homens que possuem uma relação amorosa estão confinados em uma cela, próximos um do outro, mas impedidos de qualquer contato físico. A situação evoca também a simbologia da restrição de liberdade e a impossibilidade de uma conexão humana plena, temas frequentes, por exemplo, na obra do sociólogo Zygmunt Bauman o que nos remete a modernidade líquida, conceito desenvolvido pelo sociólogo para descrever a natureza volátil e instável da vida contemporânea e também do poder do estado frequentemente fragmentado e disperso que gerencia a insegurança dos indivíduos, mas não necessariamente a resolve.

 Essas incertezas e fragilidades das relações humanas, que criam barreiras para conexões profundas e duradouras aparecem também como tema no espetáculo, principalmente na tensão representada pela proximidade física, mas pela impossibilidade de contato.  A direção conduz o espetáculo por meio de atmosferas e camadas que alternam entre a tensão claustrofóbica e as paixões inerentes dos personagens, às quais temos acesso conforme suas memórias retornam em momentos fragmentados.

Sobre a fluidez e a incerteza na vida contemporânea em ‘Jacinto Morto’

Rapha Gouveia em cena na dramaturgia ‘Jacinto Morto’/ Foto: Denni Sales.

Curiosamente, a encenação, cuja premissa dramatúrgica propõe um cenário fictício e distópico, apresenta rupturas e uma aura cinematográfica. Essa característica de fragmentação e a sensação de um mundo distópico também falam sobre a fluidez e a incerteza da vida contemporânea, onde as estruturas sociais são instáveis e constantemente mutáveis.

É fato que mesmo em sociedades onde as vivências LGBTQIAPN+ não são criminalizadas, pessoas LGBTQ+ podem enfrentar uma série de restrições que funcionam como formas de aprisionamento. O preconceito e a discriminação ainda são existentes em vários espações de socialização e ainda criam ambiente hostil. Além disso, a violência física e verbal ainda é presente e influencia na liberdade de expressão e movimento, o que pode gerar a sensação constante de estar em perigo.

Neste caso, a dramaturgia de “Jacinto Morto” sugere uma espécie de distopia dos tempos extremos, que também pode funcionar como uma possível releitura da nossa atualidade, cada vez mais distópica e atingindo níveis inimagináveis e absurdos. Nesse contexto, o casal preso em uma cela e acorrentado, aparentemente sem outra justificativa além de serem homens gays, são as pistas iniciais de uma encenação que provoca e questiona, deixando as respostas para o público. À medida que avançamos nesse labirinto narrativo, somos guiados pelas falas dos próprios personagens e por suas memórias, revisitadas em cortes abruptos e sobreposições de diálogos, intensificando a sensação de incerteza e caos iminente.

A direção musical, a cargo de Ray Gouveia, contribui para criar uma atmosfera externa enquanto acompanhamos as internalidades dos dois personagens. Isso funciona como um grande instigador para o público, pois, embora as pistas estejam presentes, as informações concretas do que está acontecendo vão se moldando na fala e na concretude da cena. O principal fio condutor são os próprios personagens, e por meio deles, somos guiados. A peça, assim, se torna uma reflexão sobre a opressão, a identidade e a resistência em face da adversidade.

“Jacinto Morto” consegue trazer debates instigantes sobre a condição humana e as lutas por aceitação e igualdade, oferecendo uma reflexão sobre como podemos desafiar, ou até mesmo não, os muros invisíveis impostos socialmente. Aqui, o cerne da discussão reside em como resistir e romper essas amarras que nos aprisionam e impedem nosso progresso.

Ficha Técnica

Cícero Locijá em cena na dramaturgia ‘Jacinto Morto’/ Foto: Denni Sales.

Realização Cia Acerola

Dramaturgia e direção: Leonardo Crusoé

Elenco: Rapha Gouveia, Cícero Locijá

Figurino: Thiago Arreinha

Preparação de Elenco: Daniela Botero.

Direção musical: Ray Gouveia.

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