Isto não é uma resenha: “No dia em que eu não fui”, de  Andressa Arce

Em No dia em que não fui (Patuá, 2024), que brota a partir das memórias da autora, temos a materialização dos fragmentos que Alice obteve da meia-irmã, Liana, ao longo da vida, a partir de comentários dos adultos.

A escritora Andressa Arce, autora de No dia em que não fui (Patuá, 2024). Foto: Divulgação.

Sou desgostosa das ênclises, e mesóclises são imperdoáveis. Fujo das palavras raras e sou contra esse desejo de obedecer à norma absolutamente. Sou apaixonada pelo descontrole, pela língua indomada, gosto de ver no livro a transposição dos sons e da vida que saem das bocas por aí. A norma é redutora, e por isso me soa pobre e morta. A língua é rica demais para se submeter às regras em todos os seus espaços, mas a literatura é algo mais, muito mais do que linguagem.

Várias são as obras que não carregam essa forma de linguagem preferida – inclusive esse texto que escrevo –, são a grande maioria, e o que seria de mim, então, se não pudesse gostar de algumas delas? É preciso sentir além da língua, ou limitaria extremamente minha vida de leitora. Então visito essas formas de língua que não são as preferidas, mas que não precisam de grande empenho para me convencer dos sentimentos que expressam, pois já os vivi de alguma maneira, e é o que acontece com a estreia de Andressa Arce, No dia em que eu não fui.

No romance, que brota a partir das memórias da autora, temos a materialização dos fragmentos que Alice obteve da meia-irmã, Liana, ao longo da vida, a partir de comentários dos adultos. Finalmente irão se conhecer. No entanto, a reunião desses retalhos, que assumem um corpo com pedaços não contados e alguém para admirar, chega até ela já fragilizada e, tão subitamente quanto veio, se vai, sem possibilidade de se juntar de novo. Liana está morta e, em torno da morte, Alice cresce com as outras sensações que a vida oferece, afetadas.

“Nada me impedia de cavar à procura dos meus próprios ossos.”

‘A parte do dele que mais me sensibilizou se refere ao transtorno alimentar de Alice’, Lili X sobre ‘O dia em que não fui’, de Andressa Arce

Apesar de o tema central do livro ser o luto – e de ter sido este tema o que trouxe o livro até mim nessa jornada de compreender meus próprios sentimentos com relação a uma perda tão prematura e sem avisos – a parte do dele que mais me sensibilizou se refere ao transtorno alimentar de Alice, desenvolvido a partir da pressão estética, naturalmente, mas também como mecanismo de defesa contra outras violências que envolvem ter um corpo, ser mulher e estar no mundo.

“Ninguém conta do transtorno que causa ganhar peitos e bunda […] A puberdade recém havia me atingido quando, enquanto brincava no mar, um homem acompanhado da filha pequena pegou na minha mão e disse algo obsceno no meu ouvido […] À medida que perdia peso, as coxas, os seios e os quadris murchavam, e eu conquistava a liberdade.”

Trecho do romance “O dia em que não fui”, de Andressa Arce.

Foi um ponto de conexão inesperado, mas algo em que tenho pensado há algum tempo. Não tenho qualquer problema com o peso além da dor física que envolve ter mais de cem quilos, contudo, evito há anos a hormonioterapia apesar do desejo. Existe nisso, claro, minha cautela típica e alguma preocupação com a saúde do ponto de vista clínico, mas não posso negar que, assim como Alice, quero evitar o “transtorno” que causa “ganhar peitos e bunda”. Este adiamento também é um mecanismo de defesa contra a agressividade do mundo e, ao mesmo tempo, parece, tal como a anorexia, uma autoagressão.

Ao fim das páginas, ficou a impressão de  que a linguagem escolhida foi uma barreira nos caminhos que me levariam a uma conexão mais profunda sobretudo quanto a estes sentimentos que já me habitam. A falta de características orais no texto, reforçada na presença de estruturas pouco típicas na fala – e até mesmo em muitos contextos de escrita – como “quiçá”, “matar-se”, “dói-me”, “erraram-na”, “dar-lhe-ia” e “noutro”, principalmente considerando a idade da protagonista, criaram essa sensação de irrealidade que afastou emocionalmente. Se você tiver mais abertura quanto a língua, ou esta for sua forma de língua preferida, certamente encontrará genuinidade e caminho aberto onde vi barreiras.

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No dia em que não fui, de Andressa Arce
Editora Patuá, 2024
Romance, 86p.
R$ 56,60.

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