Identitários do mundo uni-vos: Considero que respeitar o “lugar de fala” de cada um; a sua identidade é o que nos torna humanos. É o substrato que enriquece o universo, sobretudo, quando falamos de arte e cultura.

Em sua última edição, a revista O Odisseu lançou uma provocação aos seus leitores no título (em forma de pergunta) “Quem tem medo dos identitários?”. Com o propósito, nas palavras dos editores, de “pensar o recente boom da literatura de autores negros, LGBTs, nordestinos, indígenas, asiáticos e de diversas minorias sociais (e quem está incomodado com isso)”, o número 22 da revista traz diversas visões de escritores e estudiosos de várias áreas, sobre o chamado “lugar de fala”.
À época, em viagem à Genebra para participar do Salão do Livro, não pude escrever, em tempo hábil, meu texto de contribuição para esse debate. Por isso, no espaço dessa coluna, trago, hoje, minhas ponderações sobre esse tema tão importante.
A primeira delas, por óbvio, me parece ser a resposta à pergunta formulada. Por isso, respondo: não tenho medo dos identitários. Muito pelo contrário, considero que respeitar o “lugar de fala” de cada um; a sua identidade é o que nos torna humanos. É o substrato que enriquece o universo, sobretudo, quando falamos de arte e cultura. A literatura, como integrante das artes, torna-se mais rica com os diversos matizes identitários. Cores pintadas por aqueles que vivenciam, na carne, as dores e alegrias de suas próprias existências. O que, não impede, contudo, que a empatia de quem não viveu na pele as mesmas agruras, produza boas obras de arte.
“Acho que encontrar o equilíbrio na multiplicidade de ideias e valores presentes nas lutas identitárias, fará toda a diferença” – Luciana Konradt
A gênese dos chamados grupos identitários está em muitos fatores. Um observador social poderia identificar no mundo globalizado, pela comunicação instantânea, talvez a principal delas. Alguém que viveu muito e observou a dinâmica social por algumas décadas talvez se lembre que, no âmbito dos diretórios acadêmicos, das (hoje quase extintas) associações de bairros e sindicatos, por exemplo, se reuniam diversos movimentos, dentro dos quais se ouviam muitas vozes. Ainda não havíamos criado a expressão “grupos identitários”, mas no cerne da discussão interna das entidades, todos os segmentos eram, de certa forma, representados.
Nos tempos sombrios da ditadura militar, a voz de um somou-se à voz do outro e, independentemente de suas bandeiras pessoais, vibrou em um canto único em defesa da democracia. Entre os 16 e os 25 anos, quando cursei as faculdades de Jornalismo e Direito, lembro das discussões acaloradas em reuniões do movimento de mulheres e de jornalistas. Lembro, ainda, de um bloco de Carnaval emblemático, no qual cada uma de nós, portando uma camiseta amarela (que, à época, não havia sido corrompida pelo ideário extremista de direita), foi às ruas, ao som de “Pelas tabelas”, de Chico Buarque, para defender as “Diretas Já”. Da pequena Pelotas, onde residia naqueles tempos, era alentador ouvir esse grito ecoar em manifestações pelo Brasil inteiro.
Se a pressão da sociedade civil organizada foi decisiva na queda da ditadura, nos anos que se seguiram, vimos um progressivo desmonte das organizações sindicais e comunitárias. Na geleia “líquida” da sociedade contemporânea, no termo usado pelo sociólogo Zygmunt Bauman, a comunicação de massa deu voz e visibilidade milhares de pessoas. Se, em essência, isso foi maravilhoso, pois permitiu que os espaços virtuais fossem ocupados por diversas e necessárias bandeiras de luta, houve, também, um grande esvaziamento nos espaços de debate atrelados às antigas representações da sociedade.
Acho que encontrar o equilíbrio na multiplicidade de ideias e valores presentes nas lutas identitárias, fará toda a diferença. Não tenho medo dos identitários, mas espero que, junto com o lugar de fala de cada um, possa vibrar a voz do outro. Que possamos estabelecer uma rede forte, onde a palavra individual possa ressoar alto, mas entrelaçada às muitas outras vozes, na necessária defesa dos valores democráticos. Um domo de muitos matizes, construído a partir de muitas mãos e ideias, sob o qual se guarde o sol da liberdade e dos direitos humanos fundamentais. E dentro do qual as sombras nunca mais possam fazer sua morada.
Quis a casualidade que esse texto fosse escrito hoje, 25 de abril, quando se comemora a Revolução dos Cravos, responsável pela derrocada do fascismo em Portugal. É alentadora ver a vigilância dos portugueses, que comemoram a data com efusivas manifestações, unidos, nos mais diversos setores da sociedade. O bom exemplo português deixa evidente o quanto é importante preservar nossa memória e unirmos todas as vozes, para que as gerações futuras nunca esqueçam dos horrores perpetrados por regimes autoritários.
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