Logo após a contação de histórias, Itamar sobe ao palco e se junta a Mario Omar para conversar sobre o livro. O autor conta que foi a primeira vez que ouviu uma contação de histórias e que ficou apaixonado pela narração de Mario e instrumentalização de Rick.
Quem entrou no auditório do Centro de Artes, Humanidades e Letras da UFRB de Cachoeira às 11h da manhã de sábado (19/10) pôde sentir, logo na entrada, uma atmosfera de encantamento no ar.
Com as luzes apagadas, o auditório era iluminado pelas projeções lindíssimas da Manuela Navas que alcançavam todo o palco, mas também projetava nas paredes a beleza de “Chupim”, primeiro livro infantil de Itamar Vieira Jr, autor do premiado “Torto Arado” e “Salvar o Fogo”.
Antes mesmo do contador de história, o encantador Mário Omar, chegar ao palco, Rick Carvalho elevava o ambiente a um lugar mágico por meio do toque da Kora, instrumento milenar que é uma espécie de antecessora da harpa. Além da vibração suave das cordas, Rick fazia uma série de chocalhos com chaves e outros objetos inusitados. Durante a apresentação, o instrumentista misturava uma composição autoral com acordes de “Asa Branca” e outras canções importantes da música popular brasileira.
Ouvir a contação de histórias de Mario Omar é um privilégio sem tamanho. O artista tem um trabalho imprescindível de oralitura que resgata a tradição oral da cultura africana. Olhando e ouvindo Mario, fiquei com a sensação de que se trata de um Griot moderno, um mestre mais velho (apesar de super jovem!) que traz sabedoria e ensinamentos valiosos aos mais jovens por meio da contação de histórias.
Sem esconder o sotaque baiano, mas empoderando-se dele, Mario atrai crianças e adultos com sua contação. Foi ele o responsável por ler “Chupim” para as crianças na FLICA.
O trabalho no campo pelo olhar das crianças
“Chupim” é uma preciosidade. A história curta nos apresenta o ambiente rural, que é o espaço da narrativa e debate levantado por Itamar Vieira Jr desde “Torto Arado”, mas dessa vez sem tanto espaço para a dor e sofrimento explícito que encontramos nos demais livros do autor.
Itamar escolheu nos aproximar da realidade rural do Brasil, do conflito de terras, do trabalho subvalorizado, dessa vez pelo olhar da criança. E o olhar da criança é sempre o olhar da encantação, da beleza, da magia, mesmo em situações em que não são tão boas ou justas. No entanto, há de se notar que é neste olhar pueril que podemos encontrar respostas para dificuldades inventadas pelos adultos.
É exatamente isso o que propõe Itamar ao nos apresentar o personagem “Julim”, filho de trabalhadores do campo que se revezam de fazenda em fazenda para trabalhar como “meeiros”. Claramente Julim não entende nada disso e Itamar faz questão de não registrar essa informação com esses termos tão específicos que eu apresentei aqui.
Na verdade, Julim não entende bem essa situação e tampouco porque os seus pais chamam o “Chupim”, pequeno pássaro preto que colhe arroz nas plantações, de praga.
Julim não vê o Chupim como praga e não entende porque se incomodar tanto com um passarinho que colhe tão pouco daquele campo de arroz tão grande. Ele não compreende a impossibilidade de dividir um recurso que é tão amplo e vasto. Para Julim, dividir é a resposta óbvia e vê isso como simples. E não é?
É nesse incômodo de Julim, tão bem narrado por Itamar, que percebemos como o mundo injusto funciona apenas porque essa ganância nociva, invenção dos adultos, perdura mesmo contra o sentido. Por isso, a história consegue ser uma maravilhosa porta de entrada para discutir questões de desigualdade numa lógica simples.
Porque a verdade é que o problema da desigualdade pode ser resolvido por meio de ações simples. Então por que tantos entraves e tantas guerras? A ganância que motiva uma pequena parcela da sociedade a querer muito enquanto a maioria vive com pouquíssimo, constrói entraves imaginários para a impossibilidade da utopia.
Além disso, a ambientação do campo descrita em “Chupim” é uma graciosidade à parte. A cena em que as crianças correm pelos campos de arroz e assim espantam os chupins tem muita boniteza. Em tempos em que a infância é tão trancafiada e cerceada, é muito importante trazer esse resgate da beleza da natureza e da terra pelos olhos, mãos e pés das crianças.
‘As perguntas das crianças são mais interessantes que as dos jornalistas’, diz Itamar Vieira Jr na FLICA
Logo após a contação de histórias, Itamar sobe ao palco e se junta a Mario Omar para conversar sobre o livro. O autor conta que foi a primeira vez que ouviu uma contação de histórias e que ficou apaixonado pela narração de Mario e instrumentalização de Rick.
A conversa, para adultos, sobre a importância da leitura para as crianças como forma de conscientização, foi seguida de uma sessão de perguntas apenas para as crianças, o que deixou o autor muito animado: “as crianças têm prioridade em fazer perguntas. Eu acho que as perguntas das crianças são mais interessantes que as dos jornalistas”, disse.
Tinha razão. As crianças queriam saber o porquê do Chupim não poder comer o arroz, ou por que algumas crianças badogavam passarinhos e teve até um menino de sete anos que perguntou “por que existe desigualdade?”. Com paciência, Itamar respondia a cada pergunta apostando em ilustrações para responder. Há um quê de griot também em Itamar.
Ao finalizar a sessão de perguntas ele endossa: “não há idade certa para falar de assuntos sérios, como desigualdade, para crianças. Basta falar de uma forma como elas entendam”. E tirando pela experiência que aquelas crianças tiveram e como elas se predispuseram a entender a dor do Chupim, vejo que ele estava certo.
‘Quando a gente conta uma história para uma criança, com certeza, ela elabora muito melhor o mundo’, diz Mario Omar na FLICA
Após a mesa e a sessão extraordinária de perguntas que aconteceu, eu não pude deixar de me aproximar e elogiar muitíssimo o trabalho de Mario Omar que, herdando essa tradição ancestral, essa oralitura que tanto nos ensina Cici de Oxalá, tem certamente ensinado muitas crianças.
Na oportunidade, perguntei a ele como é falar de assuntos tão complexos como questões de terra e desigualdade social para crianças.
“Eu aprendi e tenho visto que o nome disso daí é ‘educação ancestral’. A educação de crianças sempre se deu por meio da oralidade, a contação de histórias nada mais é que a literatura oral em suma que é isso que eu acredito. Eu acredito muito na educação ancestral que passa pela contação de história. Então quando a gente conta uma história para uma criança, com certeza, ela elabora muito melhor o mundo: os amores, os desamores, as desigualdades, a própria natureza humana em toda a sua complexidade é elaborada por uma criança quando ela ouve uma história.”
Mario Omar para a Revista O Odisseu
Aos 30 anos, Mario já é bastante conhecido na cena literária infantil na Bahia e vem conquistando o seu espaço no Brasil. Essa não foi, inclusive, a primeira vez que o vi trazer para perto de si crianças de todas as idades para ouvir, com atenção, uma contação de histórias.
Durante a mesa, ele disse que não apenas gostou de “Chupim”, mas que a história tinha gostado dele também. Sim, muito! Um privilégio ouvir a história linda de Itamar na narração aconchegante de Omar.
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