Felipe Munita: ‘a leitura pode trazer transformações, mas de uma maneira pouco utilitarista e mais subjetiva’

No Brasil para o lançamento de seu livro ‘Eu mediador(a)’ (Solisluna e Selo Emília), o professor chileno Felipe Munita conversou com a revista O Odisseu sobre a mediação literária nas escolas.

O escritor chileno Felipe Munita, autor de ‘Eu Mediador(a)’. Foto: Divulgação.

É um tempo esquisito para os leitores de literatura. Se por um lado, nunca antes se falou tanto em mediação, pouco se fala do que faz de fato esse mediador. Tendo em vista clubes de leitura mediados por celebridades e que podem custar bem caro por uma “mediação”, é mais que importante agora conseguir pensar no papel dessa figura tão popular no meio literário.

Essa é justamente a proposta do escritor e professor chileno Felipe Munita, autor do interessantíssimo livro “Eu Mediador(a)” que acaba de chegar ao Brasil numa publicação conjunta das editoras Solisluna e Instituto Emília Emília. Munita é professor na Faculdade de Filosofia e Humanidades da Universidade Austral do Chile e está em Salvador para lançar amanhã (25) seu livro na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia.

Inclusive, foi na FACED que nós nos encontramos para uma conversa amigável sobre mediação literária. No livro, Munita desenvolve bastante a figura do mediador/professor, tendo em vista a importância que esse tem nas aberturas do texto literário. Segundo ele, muitos professores se veem e estão de fato despreparados para lidar com o texto literário na sala de aula.

Fora da sala de aula, a leitura é altamente romantizada. Os que pregam “a leitura é um hábito diário” muito tendo em vista uma rotina de leitura focada no utilitarismo neoliberal (leia e ganhe repertório e amplie seus conhecimentos) propõem uma leitura vazia de significados que arrasta multidões.

Dito isso, o que fazer de fato com os textos literários? Quais as chaves que esse texto nos oferece? Bom, foi isso o que conversei com Felipe Munita e essa conversa você confere agora!

‘Os adultos convidam as crianças para ler por um viés utilitário’, diz o professor Felipe Munita

Ewerton: Você fala muito da dimensão política da mediação e isso me faz pensar bastante como hoje em dia a leitura é vista muito dentro do ponto de vista utilitarista. Então “eu vou ler porque assim eu ganho um arcabouço para, no fim, conseguir dinheiro”. Aqui no Brasil, as pessoas entraram numa onda de entrar em grupos de leitura porque entenderam que isso garante um bom repertório e, assim, ganhar dinheiro. O que você acha disso?

Felipe: Em geral eu tento me afastar dessa ideia utilitária da leitura. Eu estou convencido que a leitura forma as pessoas, mas forma de uma maneira bem mais sútil, ou seja, não é que eu leia e depois eu vou imediatamente  trazer para mim todos esses conceitos e todas essas formas de estar no mundo, todos os conhecimentos. A literatura nos forma de uma maneira bem mais indireta, poderíamos dizer. Então, no trabalho com as crianças isso é especialmente conflitivo, eu diria, problemático. Porque muitas pessoas adultas querem convidar as crianças a ler muito pelo caráter utilitário: “olha, lê porque você vai ter mais vocabulário”, quando, na realidade, a leitura, especialmente a leitura literária, fica trabalhando em nós. Ou seja, um livro que você gostou muito, que falou de uma maneira especial com você, fica trabalhando em você. E talvez você vá experimentar mudanças na sua história a partir dessa leitura, mas de uma maneira pouco utilitarista, mas de uma maneira muito mais subjetiva. Você pega alguma coisa dessa literatura e isso, de alguma maneira, vai te acompanhando na vida em geral. Então, para mim, é importante trabalhar na formação dos leitores precisamente pelo viés poético e político, de oferecer a palavra literária precisamente para tudo e que não seja só para uma elite. Por exemplo, eu trabalho muito a poesia. E algumas pessoas dizem: “ah, não, a poesia não é para mim, é para outros, para uma elite, para os entendidos” e eu trabalho duramente para aproximar essas pessoas ao mundo da poesia porque eu acho que é um universo que te alimenta de uma maneira outra, uma maneira diferente. 

A importância de levar bons textos para a sala de aula

Ewerton: Me interessa muito esse seu ponto de vista e me interessa dentro do viés da sala de aula que você discute muito aqui também. Algumas questões me vêm à cabeça. Por exemplo: o conteúdo do livro importa? Aqui no Brasil a gente tem uma grande polêmica porque algumas pessoas não querem mais os textos clássicos na sala de aula. Dizem que essa literatura pouco interessa aos adolescentes, que é pouco atrativa. Mas esse discurso também tem um perigo, né? É quase como se dissessem “essa literatura não é para vocês, é para uma elite”. Aqui no Brasil Machado de Assis é a grande referência na literatura escolar e muitas pessoas pensam em restringir esse autor nas escolas. O que você acha disso?

Felipe: Você me faz lembrar uma experiência que vivemos com um grupo de mediadores e mediadoras no sul do Chile. Nós levamos para a sala de aula a poesia da Alejandra Pizarnik, uma enorme poeta argentina, para as salas de aula do final do ensino médio. E um companheiro da universidade falou: “Pizarnik na escola?! Não! Você está louco, é impossível! Eles não vão entender nada”. E neste momento eu fiquei pensando “eu entendo exatamente a poesia da Pizarnik?”. É uma poesia bem hermética, sabe? Não é fácil de ler, é difícil. E eu fiquei pensando: “eu compreendo a poesia da Pizarnik?”  Mas eu entro realmente na poesia da Pizarnik e essa poesia trabalha em mim, embora eu não utilizasse precisamente esse verbo. Bom, o que aconteceu depois foi absolutamente maravilhoso, maravilhoso! Mas, há uma característica que acho que foi fundamental para isso o que aconteceu: a mediação. Porque se eu chego para você e digo “toma aqui a poesia de Pizarnik, desfruta” e você talvez não tenha as ferramentas para entrar na poesia. É muito mais difícil que você consiga entrar, curtir a poesia. Então, o que aconteceu foi todo um percurso, um itinerário de formação, com conversa literária, discussão, socialização dos leitores. E a partir daí muitos adolescentes amaram Pizarnik. Eu faço todo esse caminho para te dizer: para mim é muito importante levar bons textos para a sala de aula e para todo o contexto sócio-educativo. Não para conseguir que todo mundo leia e goste da Pizarnik, porque depois cada um vai escolher de acordo com o seu gosto. Mas sim para dar a oportunidade de encontrar portas de entrada para esses textos que são mais difíceis e que ficam talvez um pouco mais longe do horizonte de possibilidades de um menino ou uma menina.

Ewerton: Então podemos afirmar que a mediação acaba sendo essencial para a leitura desses grandes clássicos.

Felipe: Sim, e por isso eu faço toda essa obra sobre a mediação que, para mim, é uma noção que está desde os princípios deste século na boca de todo mundo, mas que não tinha uma obra que a conceitua-se de uma maneira mais profunda sobre o que falamos quando falamos de mediação. Claro, isso é importante para os textos grandes e literários, mas é importante para todos os textos. 

‘A democratização da leitura em nossos países passa pela escola’, diz professor e escritor chileno Felipe Munita

O escritor chileno Flipe Munita. Foto:
Divulgação.

Ewerton: Entrando mais ainda na sala de aula. Muitas vezes o professor é o primeiro contato, a primeira ponte que uma criança tenha com um livro, especialmente no Brasil com os nossos números decepcionantes quanto à leitura. A gente sabe que aqui no Brasil a literatura ainda está muito restrita à uma classe específica, a um conceito e público específico. Muitas vezes é na sala de aula o primeiro momento que essas crianças terão o primeiro contato com o objeto livro, pegando-o na mão pela primeira vez. Algumas pessoas chegam a dizer que no Brasil é mais fácil chegar às mãos de  uma criança uma arma que um livro. O que você diria a esse professor que vai apresentar pela primeira vez o livro na sala de aula com tanta coisa acontecendo ao redor?

Felipe: Que esse professor é uma porta aberta para democratizar as práticas da leitura. Em nossos países, essa democratização passa muito pela escola. A escola, e aqui eu estou pegando uma frase da Graciela Montes, argentina, ela diz “a escola é nossa grande oportunidade em nossos países para formar pessoas”. Então, para mim, a escola é fundamental. Mas se esses professores ou professoras começam o contato com a literatura a partir do conteúdo meta-literário… Por exemplo, muitos meninos recebem textos para ler e a professora diz: “neste poema vocês têm que achar duas metáforas e duas comparações”, aí temos um problema porque eu leio poesia e você talvez também, mas quando lemos poesia não é para encontrar duas metáforas ou comparações, é para construir uma forma de diálogo comigo mesmo e com o mundo através da voz poética. E a voz poética é uma forma outra de dialogar comigo mesmo ou com os outros. Isso para mim é o fundamental sobre levar textos literários para as escolas. Mas esse tipo de experiência quase não tem tradição escolar. Estamos agora, hoje, começando a pensar como podemos trazer essa experiência tão potente de leitura literária para o contexto escolar que é tão regrado.  

Ewerton: Você fala muito também da importância de se ter contato com a teoria literária para fazer a mediação. Por que você acha tão importante?

Felipe: Porque a maioria das pesquisas dos últimos anos está mostrando uma coisa bem importante: há muitos professores que não sabem o que fazer com o texto literário, com a poesia e com o texto literário em geral. E muitos professores falam isso comigo: “olha, Felipe, eu não sei o que fazer com uma poesia na sala de aula”. Uma vez uma professora me disse: “olha, Felipe, eu tento passar rapidinho pela poesia para chegar logo aos outros conteúdos”. Então, se você não tem um conhecimento da literatura e do texto literário, é muito difícil que você consiga abrir portas importantes naquela leitura e vocês ficarão apenas na superfície. “E então, o que vocês acharam? Gostaram? Não gostaram?”. Ou então “vamos ler para aprender vocabulário, vamos ler para trabalhar questões de gramática”. Isso é um problema evidentemente porque não tem nada a ver com essa experiência fundadora que estávamos falando antes. E isso não irá abrir portas. Se você não sabe do que é feito um texto literário, de como é construído uma imagem de um poema, ou como um romance é maravilhoso dentro de uma perspectiva narrativa, porque entre os capítulos mudam a forma de narrar, é muito difícil. E isso é um problema, como foi para essa professora minha amiga que disse que não sabia o que fazer com o texto literário, eu passo rapidinho.  Não sabe como estimular o conhecimento e não sabe como fazer esse conhecimento passar pela experiência que também, na formação docente, é importante vivenciar essa experiência de leitura que falávamos antes e não só vivenciar os conteúdos. 

Leitura para além dos conteúdos

Ewerton: Aqui no Brasil a gente tem uma tradição muito forte de ler o texto literário como um suporte para a história. Então nós lemos o texto muito interessados em entender o contexto histórico, mas sem criar um vínculo entre aquele que lê e o texto literário lido. Então lembra um pouco aquilo que o Paulo Freire vai falar da própria bagagem do aluno para construir sentidos. 

Felipe: Porque o sentido não está só no texto, mas em você e nesse diálogo que você estabelece com o texto. Borges falou assim numa conferência em Oxford: “eu penso que o sentido não está só na poesia, ou no texto, o sentido também se constrói quando o leitor começa a dialogar com esse texto” e esse diálogo se estabelece com toda essa bagagem que você mencionou, com toda experiência prévia de vida. 

Veja onde será o lançamento do livro ‘Eu Mediador(a)’ em Salvador!

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