‘Expedição ao inverno’, de Aharon Appefeld: um livro cuidadoso em imagens

‘Expedição ao inverno’, clássico do autor israelense Aharon Appefeld, apresenta um mundo em que a natureza das coisas parece alterada, como num sonho.

Aharon Appelfeld, autor de ‘Expedição ao Inverno’, em 2010 Foto: AFP PHOTO / Philippe MERLE

“Meu velho, como se torna difícil explicar as coisas quando a liberdade instala em nós seu reino de incertezas.

Agora, eu preciso distinguir cada céu, conseguir de cada um a intimidade singular, de cada vento devo arrancar o segredo, a confidência, de cada alegria é preciso que eu estabeleça os limites, (…) Agora, irmão, tudo é diferente e nada se repete. E não sei que irremediável fatalidade de conhecer, de distinguir, de aprender a tudo amar ou tudo odiar em sua fase distinta me leva para frente, sempre mais para frente até a incerta fronteira em que o pudor desmente a intimidade das coisas, obrigando as palavras a se dirigirem para os domínios da poesia”

Carta Otto de Paulo Mendes Campos, no seu lirismo parece colocar em palavra todo um mundo do qual muitas vezes a própria palavra parece não dar conta. Um mundo de ebulição das coisas, do lirismo e do reconhecimento da barreira imposta da linguagem. A necessidade de capturar o segredo das coisas, de se aproximar delas através da palavra, como se fosse ela mais real do que a coisa em si, mas a carne das palavras é fraca demais para sustentar o sentido. Esse mundo em que a natureza das coisas parece alterada, como num sonho, que está presente em Expedição ao Inverno de Ahron Appefeld.

Expedição ao inverno, publicado no Brasil pela perspectiva com tradução de Luis S. Krausz, é um livro que conta a história de Kuti, menino com dificuldade na fala. Após perder o pai, Kuti, que também é criado pela sua madrasta Hanna, no entanto, é colocado diante da necessidade de conseguir sustento para si e sua madrasta. Kuti terá de trabalhar no hotel que existe na pequena cidade em que se passa o livro.

O mundo de Kuti é o dos habitantes de uma pequena cidade nos Cárpatos, o caleidoscópio entorno das diferentes possibilidades de vivenciar o judaísmo. A realidade de Kuti gira entorno do homem milagroso, hóspedes do hotel onde trabalha, um ex-militar saudosista do império austro-húngaro, o clube de xadrez, Hanna e tantas outras imagens. É um mundo de fronteira entre a ideia/palavra e o mundo na sua concretude aniquiladora.

O mundo apresentado por Appelfeld é o da sutileza, do tatear cuidadosamente a pele das coisas quando o mundo ainda é escuro e nem tudo é conhecido. Seu personagem principal, Kuti, ao nascer gago, se depara com a intransponibilidade das palavras. Em um mundo em que tudo ainda é novo, mundo no qual habitam grandes ursos que o visitam em sonho, homens milagrosos, as letras hebraicas e no qual nem os adultos parecem saber a resposta para a pergunta.

Talvez por isso mesmo, Expedição ao inverno é um livro tão cuidadoso com suas imagens, a palavra não se satura e o horror, a tragédia que se coloca, o faz sem alardes.

Ainda que à primeira vista a narrativa composta por Appefeld transpareça a simplicidade, como qualquer romance bem construído, essa simplicidade é aparente. O livro tem suas raízes mais profundas fora dos olhos distraídos e sua narrativa encontra seu leito na história do judaísmo e suas reviravoltas. Seu caleidoscópio passa pelas reformas, contrarreformas, assimilação, na crença da ciência como libertadora, na Alemanha como a nação da cultura e da razão, a queda do império austro-húngaro, o estudo do hebraico e a velha sinagoga vazia da cidade.

Na narrativa de Appfeld não há heróis, as pessoas tentando lidar individual e coletivamente o medo, a dor e os seus traumas. O protagonista, órfão de pai e mãe, se depara com um mundo cacofônico das incertezas e impossibilidade de ver um futuro claro. Seu tatear pelo mundo é em certa medida o mesmo daqueles à sua volta, em um mundo em que parece não haver nitidez e todas as coisas possam ser seu oposto.

As mortes presentes no livro também são a morte dos mundos representados pelos personagens. Com o pai morre a possibilidade de um lastro, ainda que mínimo e por vezes cruel. A perda dessa segurança representada por ele, que assim como a vivida pela comunidade nesse momento, não acontece de uma vez, mas sim gradualmente. No caso do seu pai, primeiro desaparecendo, depois confirmada a morte, a passam a viver com doações, que também vão rareando até que se torna impossível viver daquela forma. 

Assim como a morte do homem milagroso, também é em certa medida a morte dessa tradição centenária representada por ele, sem descendentes, assim como a sinagoga vazia da cidade. 

Os seus personagens, que por mais que extremamente simbólicos, não são caricaturas. O judaísmo presente no livro é plural e complexo, mostrando as diferentes perspectivas e possibilidades em uma cidade minúscula na Romênia. 

Appfeld escreve um livro sobre letras, meninos gagos e ausência da linguagem diante do mundo. As cartas a Hanna, os cafés, as letras hebraicas e a impossibilidade de falar de Kuti, estão interligadas. Expedição ao inverno nos coloca defronte da dificuldade de expressão. Em um mundo em efervescência, as palavras não dão mais conta nem da gravidade e nem da complexidade das coisas. A gagueira de Kuti é a luta contra a palavra. Se para ele o pensamento que flui de maneira clara esbarra no momento de se concretizar na palavra, também o mundo em que vive é assim. As respostas formuladas por aqueles no seu entorno não promovem mudança no mundo real, seja o homem milagroso que a todos recomenda aprender as letras hebraicas, ainda que alguns digam que isso não os ajudará. Seja naqueles que creem na ciência, no militarismo ou na razão como libertadora e não percebem a eminência do perigo que é a Alemanha nazista.

Nesse mundo repleto de palavras, a verdadeira expedição ao inverno talvez seja justamente a busca pelo sentido das coisas. No mundo em que tudo é coberto por uma névoa de cifras, há muitas perguntas e uma busca incessante de resposta. E nele talvez a resposta de Expedição ao inverno dependa muito menos da narrativa do que da pergunta formulada pelo leitor na sua leitura.

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Editora Perspectiva, 2011.

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