‘Eu não queria ir ao show de Caetano’, por Marcus Vinícius Rodrigues

Crônica do autor de ‘A Eternidade da Maçã’ sobre o último show de Caetano Veloso, ‘Meu Coco’, em Salvador e sobre sua relação com Caetano e os demais ‘Doces Bárbaros’

Foto de Aline Fonseca/ Divulgação

Eu não queria ir ao show Meu coco, de Caetano Veloso, na Concha acústica do Teatro Castro Alves

A afirmativa é muito forte. Deixem-me melhorar isso: eu não achava necessário ir ao show. Não. Não é isso. Talvez eu devesse dizer que já tinha visto Caetano tantas vezes que poderia sobreviver à ausência neste show. São tantos anos, tantos discos, tantos shows. Quando foi a primeira vez? Eu não saberia dizer. Para mim ele e Maria Bethânia sempre estiveram lá, assim como o horizonte.

Peço, agora, desculpas para me exibir. Nunca estive intimamente com Caetano, mas à sua irmã eu pude dizer a frase: “Para mim sempre existiu Maria Bethânia como existe o horizonte”. A frase foi dita na sua eleição para a Academia de Letras da Bahia e eu disse — me justifico — para ter o que dizer ao lado de meus confrades que podiam dar o testemunho de terem visto o começo da carreira de Bethânia. Antônio Torres, por exemplo, declarou que assistiu ao Show Opinião cinco vezes. Diante dessas homenagens, sendo eu mais novo que meus amigos, saiu-me essa frase, de improviso, mas um improviso verdadeiro.

Os ‘Doces Bárbaros’ (da esquerda para a direita): Gal Costa, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Caetano Veloso

Para minha geração, os baianos Bethânia, Caetano, Gal e Gil — em hierarquia alfabética — sempre existiram como existe o horizonte. Os baianos, assim sem adjetivos. Nem antigos, como Caymmi; nem novos, como Moraes e Pepeu (a vontade de dizer Baby é enorme, mas os rigores da geografia me impedem). Uma presença que não tem aparência de finitude, de ciclo fechado, como é a sensação que temos ao olhar para Caymmi. Ao mesmo tempo, não conseguimos lembrar do começo, como acontece com Os novos baianos, talvez até pelo nome que sempre nos leva a pensar em início.

Os quatro baianos simplesmente são, desde sempre e para sempre. Como o horizonte. Os quatro cavaleiros do após-calipso. Os doces Bárbaros.

Talvez seja essa a cena primordial. Os quatro apareciam na televisão, cenas rápidas. Alguma matéria sobre o show Doces Bárbaros. Eu desconfio que essa seja a imagem mais antiga que tenho deles. Claro que retroativamente eu tenho imagens de até antes de eu nascer. Mas essa eu desconfio que seja original, que eu tenha de verdade presenciado nos anos 1970. Tanto que, quando finalmente eu tive acesso ao filme dos Doces Bárbaros, na época dos Vídeos Cassetes, a minha sensação foi de reencontro. Aquelas cenas inteiras do filme colavam finalmente os estilhaços de imagens que eu tinha na cabeça desde criança.

Eram os anos 1980, eu chegava para morar em Salvador depois de uma infância nos lugares mais isolados do Brasil, cidades pequenas, pouca televisão, florestas. O Caetano cotidiano começa para mim com fitas cassetes de seus discos Outras palavras, CoresNomes, Uns… letras de músicas anotadas no caderno. Ainda hoje posso cantar Outras palavras inteira sem errar. Foram muitas horas lendo aquelas palavras inventadas. Foi quando aprendi o que é um neologismo. Desses discos, fui para o álbum A arte de Caetano Veloso, também emprestado e gravado. Como foi importante a coleção A arte de…

O primeiro disco que comprei foi Velô, em 1984. Comprei na Lobrás da Avenida Sete de setembro. O disco estava furado ou arranhado e tive de voltar para trocar. Era um tempo em que se andava de ônibus lotado com discos de vinil debaixo do braço. Nunca houve nenhum acidente. Havia uma ética que protegia os discos.

Depois disso, todos.

Comprei e ouvi todos os discos de Caetano desde Velô até antes de . Comprei os anteriores, ouvi coletâneas, participações em discos de outros. Tudo. Sei que esse comportamento não tem nada de excepcional. Como eu, há muitos fãs iguais; há pessoas muito mais fãs. Também li o que ele escreveu em livros e, por fim, escrevi um livro a partir de suas canções.

Livro “A Eternidade da Maçã”, de Marcus Vinícius Rodrigues/ 7 Letras: 2016

O livro A eternidade da maçã é inteiramente inspirado em canções suas. Não meramente inspirado. As tramas usam fiapos de histórias, temas e personagens que estão nas canções. Até mesmo uma canção nunca gravada como Clever boys samba foi usada para caracterizar o protagonista do livro: Jerônimo. Caetano a cantou em um show na Concha e eu gravei na memória. Precisei procurar muito para achar um vídeo do espacial da TV Manchete em que ele mencionava a história da música e a cantava.

O livro é construído a partir do método de Caetano de fazer referências explícitas e implícitas. Cada conto é feito a partir de uma música, mas há várias outras escondidas, o padrão escolhido é subvertido em algum momento e, sendo um livro de contos, na verdade pode ser também um romance. Coisas demais em uma única coisa. Caetano.

Eu disse que fui fiel a Caetano até Cê. Neste disco eu me senti velho. Achei que ele estava muito avant-garde e eu já queria desfrutar da calma da maturidade. Passei a olhar mais de longe como quem vê o horizonte por entre os prédios. Abraçaço nos aproximou de novo, assim como Recanto, de Gal.

Voltei aos Shows.

Não sei quantos shows de Caetano assisti. O primeiro deve ter sido O estrangeiro (ou teria sido Circulador?), que vi no Centro de Convenções da Bahia. Neste show eu quase o derrubei. No final, quando todo mundo se aproxima, fui para perto do palco e, quando ele passou dando a mão para o público, meu dedo enganchou no relógio que ele usava. Quase caiu.

Essa não foi a única vez em que eu quase derrubei Caetano. A outra foi em frente ao Teatro Castro Alves. Era o espetáculo da Cia Déborah Colker. Eu estava com medo de estar atrasado, um trauma para uma outra crônica. Corria na frente do teatro desviando das pessoas quando um senhor saiu de uma Van. Parei a tempo. Cheguei a tocar seus ombros, mas, envergonhado, fui embora.

São muitos anos acompanhando Caetano e, por isso, achei que não precisava ir ao show. Fui levado pelo amor, não a Caetano. E então ele cantou You don´t know me, lá do começo; A outra banda da terra, de minha adolescência; Baby; Sampa; Cajuína… tantas músicas, até acabar com Tieta, que vi com ele e Gal, na época do filme, naquela mesma Concha. Estava ali tudo que eu já tinha visto, tudo de novo, e era tão necessário. Eu fui sem achar que precisava ir e só quando vi é que me dei conta. Mesmo que a gente nem preste atenção, a gente precisa do horizonte.  

PS: Eu não queria ir ao show como não queria escrever esta crônica, mas acho que está tudo bem. Caetano também não queria sair de Santo Amaro.

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Sobre Marcus Vinícius Rodrigues

O autor Marcus Vinícius Rodrigues/ Foto: Danilo Alves – Revista O Odisseu

Marcus Vinícius Rodrigues nasceu em Ilhéus-Ba e mora em Salvador. É membro da Academia de Letras da Bahia, sendo atualmente seu Vice-presidente.

Tem graduação em Direito e Letras, com mestrado em Letras em que pesquisou os autores André Gide e Jean Genet.

Publicou os livros O mar que nos abraça (contos, Caramurê, 2019) Manual para composição de Vitrais (poesia, Selo João Ubaldo Ribeiro da Fundação Gregório de Mattos, 2019); Café Molotov (contos, 7Letras, 2018); A eternidade da maçã (contos, 7Letras, 2016) — vencedor do Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia de 2016; Arquivos de um corpo em viagem (poesia, Mondrongo, 2015); Se tua mão te ofende (novela, P55 Edições, 2014); Cada dia sobre a terra (contos, EPP Publicações e Publicidade, 2010); Eros resoluto (contos, P55 Edições, 2010); 3 vestidos e meu corpo nu (contos, P55 Edições, 2009), Pequeno inventário das ausências (poesia, Prêmio Fundação Casa de Jorge Amado, 2001). Além disso, recebeu menção honrosa no 15º Concurso de Contos Luiz Vilela, 2005, e no prêmio Banco Capital nos anos de 2004, 2005 e 2009. Seu conto A omoplata venceu o Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio, edição 2009, promovido pela Secretaria de Cultura do Estado do Paraná.

Participou das antologias Poesia de aluvião:Novos territórios da literatura sul-baiana contemporânea (Patuá, 2022); Histórias e histórias da Bahia (Caramurê, 2021); Ba-Vi tem muita história (Mondrongo, 2021); Tudo no mínimo: antologia do miniconto na Bahia (Mondrongo, 2018); Nome de mulher (Editus, 2018); Autores baianos: um panorama, volume 2 (P55 edições, 2014); Diálogos: panorama da nova poesia grapiúna (Editus/Via Literarum, 2010); Outras moradas (contos, EPP Publicações e Publicidade, 2007); Tanta poesia (EPP Publicações e Publicidade, 2005); Os outros poemas de que falei (EPP Publicações e Publicidade, 2004); Concerto lírico a quinze vozes: uma coletânea de novos poetas da Bahia (Ed. Aboio, 2004), além de figurar no volume Anos 2000 – Coleção Roteiro da Poesia Brasileira (Global Editora, 2009).

Apresenta os programas Palavra & ponto, no YouTube da Academia de Letras da Bahia e Letras da Bahia, na Rádio Excelsior da Bahia, FM 106,1.

  Assinou, com Matheus Vianna, o roteiro do longa-metragem de ficção Diorama, selecionado para o PanLab de 2017. Sua peça inédita D.P. Desejos partidos foi finalista do Prêmio Funarte de Dramaturgia 2018 – Região Nordeste.

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