Animado com a série de provocações feita por Islabão em ‘A arte de espantar dinossauros’, convidei-o para um bate papo sobre o livro e também sobre medicina e arte.
Uma das surpresas literárias deste ano para mim foi a leitura de “A arte de espantar dinossauros”, de André Islabão (Editora Ballejo, 2024), livro que discute questões relacionadas ao exercício da medicina a partir de algumas obras de arte.
Na obra, o médico e escritor, nos apresenta uma série de obras de arte, dos mais variados formatos, da poesia ao romance até às artes plásticas e filmes, para engatilhar debates sobre o ofício de médico. Como o próprio subtítulo do livro diz (“Como a arte pode inspirar a medicina”), trata-se de uma forma de, não apenas aproximar as duas áreas, mas de buscar na arte saberes e reflexões que precisam ser levadas para outros campos.
Nesse sentido, o livro consegue ser muito bem sucedido! Por meio de uma prosa deliciosa, André Islabão nos cativa tanto ao falar da arte quanto ao falar de medicina e, sobre o segundo tópico, foge de descrições muito técnicas. Ao contrário do que se possa imaginar, trata-se de um livro sobre medicina não apenas para médicos. O diálogo que o livro propõe não se dá apenas entre as diferentes áreas, mas também entre diferentes pessoas da sociedade.
Crítica da medicina mercantilizada
Um ponto de vista se sobressai em “A arte de espantar dinossauros”, que é justamente a crítica à medicina mercantilizada. Islabão é categórico ao falar sobre como fazer medicina hoje é, infelizmente, puramente jogo econômico. Para isso, nos apresenta dados estatísticos preocupantes que alertam sobre os perigosos jogos financeiros que estão por trás das receitas médicas e consultas superfaturadas.
Em seu livro, escreve:
“Fazer medicina de maneira séria e honesta está cada vez mais difícil. As tentações estão por todo lado, as redes sociais vivem mostrando picaretas bem-sucedidos e a própria academia médica e nossos Conselhos de Medicina não têm conseguido evitar tais distorções e abusos, o que pode levar muitos jovens profissionais a enveredar pelo ‘caminho do mal’. Tal (des)caminho leva a um lugar fictício onde envelhecer, adoecer e morrer não existem, como se não fizessem parte da própria natureza humana”
André Islabão em “A arte de espantar dinossauros”, p. 23.
Animado com a série de provocações feita por Islabão, convidei-o para um bate papo sobre o livro e também sobre medicina e arte, áreas que, ao contrário do que se pode imaginar à primeira vista, estão bastante interligadas.
‘Os grandes homens da história são aqueles que não se limitaram a uma determinada disciplina’, diz André Islabão, médico e autor de ‘A arte de espantar dinossauros’
Ewerton: Uma das consequências da modernidade foi a segmentação das diversas áreas do saber humano, algo que não acontecia na Antiguidade, em que não havia bem limites entre arte, filosofia e medicina, por exemplo. Em seu livro, sinto que você tenta recuperar um pouco dessa interdisciplinaridade. Falando mais especificamente da sua obra, como se dá essa aproximação entre arte e medicina?
André: É verdade que a modernidade tem optado por manter os diversos saberes devidamente separados entre si, o que não é necessariamente bom. É interessante notar que não apenas os antigos médicos eram verdadeiros filósofos, mas também os grandes homens da história são aqueles que não se limitaram a uma determinada disciplina. Leonardo da Vinci era, além de artista genial, um engenheiro, um anatomista, entre várias outras coisas. O próprio Einstein não se limitava à física e dedicou muito tempo à filosofia e à música. Creio que mais do que a interdisciplinaridade (quando diferentes disciplinas entram em contato) devemos buscar uma transdisciplinaridade, no sentido proposto por Edgar Morin, em que as fronteiras entre as disciplinas são borradas e cruzadas. É nessa zona intermediária nebulosa onde as disciplinas se fundem e se confundem que podem surgir coisas muito interessantes, onde são descobertas soluções impensadas para problemas até então insolúveis. No caso da medicina, a arte pode ter várias funções. Uma delas é a mudança de perspectiva, uma vez que a forma de olhar do artista é diferente daquele olhar clínico do médico e pode complementá-lo ou até mesmo melhorá-lo. Também a arte pode ser terapêutica para os pacientes e os próprios profissionais, abrindo caminho para o autoconhecimento e para uma re-humanização da atividade médica. Enfim, acredito que o médico que se dedica às artes, à filosofia e a outras humanidades pode compreender e acolher melhor o sofrimento de outros seres humanos.
Ewerton: Ainda falando sobre modernidade, outro efeito também é a posição de superioridade que a ciência tem em relação a outras áreas do conhecimento humano, como as artes. Hoje em dia, por exemplo, um compositor, exceto se bem famoso, não tem o mesmo status social que um médico. Sinto que em seu livro você coloca artista e cientista em pé de igualdade, estou correto? O que você acha disso?
André: Creio que a atual posição de superioridade da ciência em relação a outros saberes humanos está diretamente relacionada com a questão do poder econômico de quem domina os mecanismos de produção do conhecimento científico. É provável que se a ciência fosse feita de forma mais democrática, sem os controles e incentivos financeiros que vemos hoje, ela talvez não recebesse a mesma distinção. Isso porque quem domina hoje a produção científica, também domina os meios de publicação da ciência e a própria mídia que fará sua divulgação. No meio do caminho, acabamos esquecendo que só existe a ciência porque há muitos milhares de anos o Homo sapiens aprendeu a contar histórias e criou a arte da narrativa. A ciência é, de certa forma, apenas uma das várias formas de narrar e tentar compreender o que experimentamos em nossas vidas. Sem a capacidade de narrar histórias não teríamos a ciência, mas também não teríamos a poesia, a literatura em prosa, o cinema, a filosofia, as religiões e as inúmeras outras formas de se desenvolver a espiritualidade em nível pessoal. No que diz respeito à questão de arte e ciência estarem em pé de igualdade, não tenho dúvidas quanto a isso ser verdadeiro no contexto mais amplo da evolução da humanidade, no qual as artes, os mitos, a filosofia e a espiritualidade são no mínimo tão importantes quanto a ciência (e, provavelmente, ainda mais importantes). No que se refere ao conhecimento aplicado, como quando queremos descobrir se um medicamento é eficaz, neste caso não há dúvidas de que o método científico é a melhor maneira de se encontrar a verdade.
‘A ciência médica está completamente entregue à indústria farmacêutica’
Ewerton: Gostei muito do modo como o livro articula uma crítica bem consistente à “indústria da saúde”, pensando nos grandes conglomerados empresariais que lucram com a falta de acesso da grande população à medicina de qualidade. Para você, qual a importância desse debate hoje?
André: Este é um ponto que ainda precisa ser muito mais reconhecido pelo público em geral. Todos que defendem com unhas e dentes a ciência – entre os quais me incluo – devem saber que, por exemplo, a ciência médica está completamente entregue à indústria farmacêutica, com pelo menos 75% dos estudos clínicos sendo atualmente patrocinados, delineados e conduzidos pela própria indústria que lucrará bilhões se os resultados forem positivos para seus interesses comerciais e fará de tudo para obter esses resultados. Isso costuma incluir a criação de estudos tendenciosos, a supressão de resultados negativos ou a manutenção dos dados de estudos sob sigilo comercial inviolável. Nada disso parece ser minimamente defensável, mas existe ainda um tabu quanto a esse assunto. Existem pessoas dentro da medicina e da pesquisa médica que se beneficiam com isso e lutam para que não se modifique esse status quo. Há também quem acredite que ter uma ciência ao mesmo tempo robusta e enviesada é melhor do que ter uma ciência mais sóbria e livre de conflitos de interesse, mas tal ponto de vista também não me parece razoável. Ainda mais quando existem outras maneiras de se fazer boa ciência com recursos públicos ou pelo menos sem que tais recursos passem diretamente da iniciativa privada para o bolso do pesquisador, por razões óbvias. E existe, sim, uma terrível mercantilização da medicina, algumas vezes por parte dos próprios profissionais, mas em grande medida por parte de conglomerados empresariais que concentram e usam o poder econômico para definir os rumos da medicina. Todas essas situações descritas nos trouxeram até a situação atual em que os gastos (públicos e privados) com a saúde nunca estiveram tão incrivelmente elevados e, ao mesmo tempo, a população nunca esteve tão tristemente adoecida. O que não percebemos é que é o próprio sistema de saúde que está adoecido e beirando a insustentabilidade no curto prazo se nada for feito para mudar o rumo das coisas. Além disso, com todas as luzes voltadas para soluções científicas e tecnológicas, acabamos esquecendo que é a nossa própria sociedade atual que deveria ser mudada por representar um dos maiores fatores de adoecimento das pessoas.
‘O trabalho médico é uma fonte inesgotável de inspiração’, diz Médico e escritor André Islabão
Ewerton: O Brasil tem um ótimo histórico de médicos escritores, algo que vai de Guimarães Rosa a José Carlos Capinan e Ronaldo Correia de Brito. A partir da sua experiência, o exercício da medicina pode ser uma boa fonte de inspiração para ficção ou poesia? Se sim, pensa em escrever nesses dois gêneros?
André: É verdade que a medicina já nos trouxe grandes escritores e não há dúvidas de que o trabalho médico é uma fonte inesgotável de inspiração, afinal entramos diariamente em contato com histórias de vida que são riquíssimas. Basta estar disposto a escutar as pessoas. E isso vale para prosa e poesia, mas também para outras formas de arte. Há médicos que também são músicos (como eu mesmo) e há médicos que se utilizam de praticamente toda forma de expressão artística. Quanto a escrever em outros formatos, há sim planos para escrever contos, narrativas maiores e até mesmo poesia, mas acredito que este é um processo longo e que deve ser trilhado sem pressa, pois essa arte da narrativa e da escrita precisa de um tanto de tempo para ser dominada.
Ewerton: Em alguns momentos do livro você fala da depressão, por alguns apontada como a doença do século, como resultado (entre outros fatores) de uma sociedade capitalista que adoece e oprime. Gostaria de ampliar essa discussão: em que medida a ausência da arte também contribui para esse adoecimento geral?
André: Um dos maiores fracassos da medicina e da sociedade atual é a forma como temos abordado o problema gigante da depressão (ou, como gosto de salientar, “o conjunto de características pessoais que aprendemos a chamar de depressão”). É preciso lembrar que uma pessoa triste e desesperançada em relação à vida pode estar coberta de razão, pois sua vida pode ser realmente terrível e o futuro vislumbrado, totalmente desolador. Aprendemos a chamar isso de “depressão”, atribuímos a isso uma causa nunca devidamente comprovada (e já devidamente refutada) de um suposto “desequilíbrio de neurotransmissores” e tratamos de encher as pessoas de medicamentos que chamamos de “antidepressivos”. O aspecto nefasto de tal conduta é que ela nos afasta das reflexões necessárias ao nível da sociedade sobre as verdadeiras causas dessa epidemia atual de “depressão” e de uso de “antidepressivos” (em alguns países, entre 10 e 20% das pessoas usam “antidepressivos”). De um lado temos um sistema neoliberal opressor e desumano que torna a vida de muita gente um inferno e do outro temos a solução fácil de prescrever medicamentos em vez de acolher o sofrimento e tentar resolver as causas sociais do problema. Não chega a ser surpresa que a solução proposta por aqueles que comandam o sistema médico neoliberal atual é a mesma que mantém o problema em níveis epidêmicos na sociedade e ao mesmo tempo enche de dinheiro as burras da indústria. A arte entraria aqui como uma “arte de enxergar diferente”, de ver o problema sob uma nova perspectiva e buscar soluções diferentes daquelas propostas pelo próprio sistema opressor. No fundo, trata-se daquela antiga “arte da medicina” de que falava Hipócrates, o já esquecido pai da medicina, o qual defendia que se buscasse as causas reais dos problemas sempre que possível, em vez de simplesmente amenizar os sintomas. Se a medicina é tanto arte como ciência, está mais do que na hora de reequilibrarmos as coisas e darmos mais espaço para as artes e as humanidades dentro da medicina!
A arte de Espantar Dinossauros
de André Islabão
Editora Ballejo
2024
224 p.
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