Entrevista: Afinal, o que é escreviver?

Pesquisadora do tema na Universidade Federal da Bahia, Caroline Barbosa, explica o que é escreviver e quais os possíveis usos que o conceito pode trazer.

O que é escreviver? À esquerda a escritora e pesquisadora Conceição Evaristo (Foto: Reprodução)/ À direita a escritora e pesquisadora Caroline Barvosa (Foto: Acervo Pessoal).

É muito difícil estar atento aos novos debates sobre a literatura produzida no Brasil e não se deparar com o termo “escreviver” ou “escrevivência”. O termo faz parte das discussões atuais e talvez seja uma das grandes colaborações da nova geração de escritores, advindos das mais diversas classes sociais, para o debate literário no cenário brasileiro.

No entanto, nem todo mundo conseguiu ainda reconhecer o que seria, afinal, “escreviver”. Essa, inclusive, foi a provocação do escritor Ruy Castro, imortal da Academia Brasileira de Letras, ao escrever, na última semana, a crônica “Escreviver uma autoficção” na Folha de São Paulo. 

Castro, que já tem como marca registrada o pensamento sagaz e crítico (ora pertinente, ora nem tanto) faz uma série de suposições sobre o tema, mas não consegue tocar no que de fato os autores e pesquisadores brasileiros produzem ao falar da “escrevivência”. 

Do que falamos quando falamos em escrivivência

A escritora, poeta e pesquisadora Conceição Evaristo. Foto: Itaú Social (Reprodução)

Bom, para começar, Castro não cita Conceição Evaristo que é a responsável por cunhar o termo da forma como ele é trabalhado hoje. Ele ainda cita o uso do termo pelo jornalista carioca José Lino Grünewald em 1965, mas parece não entender que o que Lino propõe não é o que nós (pois me incluo nessa nova geração de pesquisadores) está tentando debater. Sim, o termo é o mesmo, mas os conceitos são diferentes. 

Logo em seguida, Castro parte também para destrinchar o termo “autoficção” geralmente associado à escritora Annie Ernaux e traz uma reflexão interessante sobre como alguns termos circulam no meio acadêmico sem que de fato haja pleno entendimento. 

Nesse ponto, concordo com Ruy Castro e por isso convidei Caroline Barbosa para uma entrevista. Caroline é doutoranda em literatura e cultura pela Universidade Federal da Bahia, e desenvolve pesquisa justamente a partir do termo “escrevivência”. A entrevista você confere a seguir!

O que é escreviver? Algumas perguntas e algumas respostas sobre o tema

Ewerton: Quando o termo ‘escrevivência’ surge com o sentido que usamos hoje?

Caroline Barbosa: Em 1995, no Seminário Mulher e Literatura, organizado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) , a escritora Conceição Evaristo  utilizou o termo e seguiu na construção do neologismo em sua dissertação de mestrado. Inicialmente, ela não pensou em criar um conceito, mas em nomear algo que se relacionava com a sua prática literária. Com a proliferação de pesquisas acadêmicas acerca dele e as próprias definições que Evaristo deu ao longo dos anos ele foi ganhando a forma atual e mais utilizada. 

Quando pensamos no neologismo a partir de José Lino Grunewald é interessante investigar como ele se aproxima e se distancia da maneira como usamos o de Evaristo. Anular a construção de Evaristo ou a dele parece uma saída que impede o debate e a própria produção acadêmica. 

Ewerton: Escrevivência é qualquer obra de autoficção?

Caroline Barbosa: Escrevivência e autoficção convocam elementos autobiográficos em diferentes graus para dentro da narrativa ficcional, mas eles possuem estratégias e efeitos distintos para isso. Na autoficção o mais importante é utilizar a tensão entre autobiografia e elementos factuais para gerar ambiguidade, deixar o leitor em um jogo de não saber. Já a escrevivência parte de outro lugar. O elemento autobiográfico aparece em conjunto com a ficção para aproximar vivências individuais da coletividade e, assim, gerar uma experiência de negritude compartilhada entre autor, narrador e leitor. 

Ewerton: Se ‘escrevive’ apenas ao escrever um relato em primeira pessoa e de cunho autobiográfico? É possível ‘escreviver’ uma ficção, por exemplo?

Caroline Barbosa: As obras que tensionam autobiografia e ficção fazem isso de múltiplas formas, sem necessariamente se alinhar à primeira pessoa . Podemos pensar Becos da Memória, de Conceição Evaristo, por exemplo, que desde o paratexto convoca o leitor a se aproximar da escritora, com fotos do arquivo pessoal dela e nomes que fizeram parte da sua vida, mas que na tessitura textual transita entre terceira e primeira pessoa do plural e possui diversas características da escrevivência. 

Quanto ao elemento autobiográfico, ele pode aparecer mais diluído dentro da narrativa e ainda assim conseguir convocar a coletividade, a vivência comum. Nesse sentido, é importante que sejam observadas as delimitações que são dadas para o termo escrevivência, como o uso da ancestralidade, a circularidade temporal, o léxico permeado por elementos de matriz africana e a aproximação e distanciamento constante da perspectiva autobiográfica, para citar algumas características. Nesse sentido, podemos tomar como outro exemplo de obra que “escrevive” , com grau bem menos autobiográfico, o romance O avesso da pele, de Jeferson Tenório, que possui diversos elementos apontados acima. 

‘É importante a discussão acerca da escrevivência para que ela seja ampliada e bem estruturada, como muitos pesquisadores têm feito ao longo dos anos’, diz Caroline Barbosa

Ewerton: Seria possível chamar o que a Annie Ernaux faz de “escrevivência”, por exemplo?

Caroline Barbosa: Annie Ernaux usa o elemento autobiográfico para construir uma primeira pessoa inserida na História e numa coletividade, mas ela não buscar pensar ancestralidade, matriz africana, a subjetividade do sujeito negro, nenhuma das características associadas à escrevivência. Ela sequer faz autoficção, pois suas obras não anseiam deixar o leitor em dúvida ou gerar ambiguidade. Existe um termo para sua forma textual: a autossociobiografia. É importante pararmos de usar esses conceitos como se não existissem anos de estudo sobre eles, pesquisas bem estruturadas. 

Ewerton: Qual a importância do debate em torno da “escrevivência” hoje em relação à literatura brasileira feita por pessoas de grupos marginalizados?

Caroline Barbosa: É importante a discussão acerca da escrevivência para que ela seja ampliada e bem estruturada, como muitos pesquisadores têm feito ao longo dos anos. Ela surge como um termo para delimitar obras que buscam reconfigurar os estereótipos construídos em torno dos sujeitos negros e, assim, seu viés político é um dos elementos principais, mas ela possui diversas outras características que são ignoradas ou resumidas a partir do senso comum por pessoas que não leem a teoria ou a crítica literária acerca dela. 

Ewerton: Ruy Castro fala de uma certa banalização do tema ou um uso muito amplo do termo. Como pesquisadora do tema, você vê isso acontecendo?

Caroline Barbosa: Por conta do momento que vivemos -de exposição midiática, espetacularização da intimidade,um retorno do sujeito – muitas obras fazem uso de elementos autobiográficos. É o sintoma de uma época. Assim, eu tenho observado as pessoas chamando todas as obras em primeira pessoa de autoficção ou qualquer obra de um autor negro de escrevivência, ignorando anos de pesquisa e história dos neologismos, além, claro das diferenças entre eles. Há a banalização e para evitá-la é necessário esse aprofundamento, ver cada obra em sua singularidade e entender o contexto em que elas se proliferaram. 

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