Em tudo que escreve, sobre a própria vida e sobre aqueles que o rodeiam, Édouard Louis é muito claro. Não há margem para subentendidos, em suas histórias não há lacunas a serem preenchidas por nós, leitores.
O escritor francês Édouard Louis causou frisson ao passar pelo Brasil e sem dúvida o ponto alto foi a entrevista ao programa Roda-Viva, onde mesmo diante de uma bancada pouco diversa e perguntas não tão profundas, o escritor conseguiu dar um show e fez basicamente aquilo que faz em seus livros: expôs verdades inconvenientes.
Em seus diversos romances já publicados, o jovem gay e de origem pobre relata principalmente a violência que advém dessas duas condições. E são mesmo condições. Ninguém escolhe nascer pobre, nem escolhe nascer gay. Em seu primeiro livro, “O fim de Eddy” (Todavia), ele relata de forma muito crua a homofobia que sofreu dentro e fora de casa, mas também a violência que ele e os outros membros da família sofreram como resultado da pobreza. E lendo as histórias de Édouard nós podemos ver que a maioria das pessoas que viviam na mesma condição que ele – pobreza – não tiveram igual oportunidade. Ele foi um privilegiado, e em seu livro “Mudar: Método” (Todavis), o escritor narra a experiência de ascender à burguesia e a sensação de estar num limbo onde nem é totalmente aceito por essa classe dominante – mesmo que tenha se moldado para caber nela – tampouco é ou um dia foi aceito pela classe de onde veio.
E em tudo que escreve, sobre a própria vida e sobre aqueles que o rodeiam, Édouard Louis é muito claro. Não há margem para subentendidos, em suas histórias não há lacunas a serem preenchidas por nós, leitores. Tudo é dito, está exposto. Em sua entrevista ao programa Roda-Viva ele explicou que essa é uma atitude anti-literária contra a ideia que ele considera burguesa, na qual a boa literatura é aquela que não diz nada diretamente, que não é objetiva, que apenas sugere e dissimula. Para Édouard, existe um motivo por trás da super valorização desse traço literário:
“A literatura é produzida sobretudo pela classe dominante, pela burguesia, e esta classe não quer conhecer o mundo onde vive, porque ela é responsável pela pobreza, e também pela falta de combate à pobreza, à violência de classe, à dominação social. Então, ela tem um interesse objetivo em se manter distanciada do mundo, em não descrever demais o mundo, em não descrever demais a verdade sobre o mundo.”
Édouard Louis, no programa Roda-Viva.
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“O romance autobiográfico é mais uma das infinitas possibilidades dentro do romance…”
Enquanto leitor, eu não quero ler apenas romances autobiográficos e livros com tramas simples ou que chamem atenção apenas pelo tema e ignorar a importância da forma e da linguagem. Mas acredito que a literatura é construída a partir da tensão produzida pela pluralidade. O romance autobiográfico é mais uma das infinitas possibilidades dentro do romance, e ao despir o texto literário de praticamente todas as suas características e deixar para análise apenas o tema, obriga o leitor ao confronto direto com a realidade. Édouard Louis entendeu isso e faz parte de uma corrente de escritores contemporâneos que estão em evidência por narrarem as próprias experiências ou por se basearem em histórias reais, ao mesmo tempo em que usam a literatura como instrumento de denúncia. Não é nada tão novo, mas é uma literatura que parece incomodar algumas pessoas quando nasce a partir de certos lugares.
Aqui no Brasil, por exemplo, é curioso ver como esse incômodo é enfrentado pela crítica que de repente começou a se importar com o leitor, com o fato do leitor “ter em mãos um livro onde tudo está exposto e explicado, quase didático”, “um livro sem nuances, onde os bons são só bons e os maus são só maus”. Parece que de uma hora para outra a crítica passou a considerar livro digno do leitor – um leitor hipotético – apenas aquele livro que apresente a trama dentro de um labirinto borgeano. E como vimos na resposta de Édouard, é compreensível esse desespero por parte de alguns críticos. Pois é um problema que o romancista use a linguagem clara numa trama simples para se apropriar da realidade e denunciar que existe um grupo no poder que só se beneficia da violência enquanto contempla do alto, existe lá na França e existe aqui no Brasil. Então, essa literatura que dá o testemunho explicitando a violência, seus algozes e beneficiários representa um perigo para a manutenção do privilégio de classe. E para o crítico a serviço do jornal que deseja manter a estrutura de poder só resta, do alto de seu elitismo, condenar que no Brasil Itamar Vieira Junior seja best-seller com “Torto Arado” e “Salvar o Fogo” e que a França reconheça Annie Ernaux e Édouard Louis.
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