Em ‘Os Grandes Carnívoros’ (Alfaguara, 2024), Adriana Lisboa opta por uma escrita “fluida”, onde leitor não tem que se preocupar tanto com a decodificação de sinais para imergir no texto. A autora trata a história como história e se atém a contá-la, a tornar a narração ‘plausível’ e instigante.
Em geral, durante a leitura de romances, procuro algum significante que me faça aproximar um pouco mais da história, quebrar a parede do jogo leitor-romance que de alguma forma se instala. Não para que se pense o tempo todo sobre “o que é” o romance e se esqueça de fruir a leitura. Pelo contrário: a fruição pode-se constituir na percepção de tal significante e na aproximação que se faz deste.
Desta vez a palavra foi “escolha” [e até faço uma brincadeira com isso, pois não é sempre que escolho dizer deliberadamente qual foi o significante do livro que me apareceu mais forte na leitura].
Adriana Lisboa opta por uma escrita “fluida”, onde leitor não tem que se preocupar tanto com a decodificação de sinais para imergir no texto, uma vez que pensamento, narração e diálogo se apresentam sem a necessidade de dizer o tempo todo [através de símbolos gráficos] aquilo que quem lê já sabe que está acontecendo. Diferente disso, a autora trata a história como história e se atém a contá-la, a tornar a narração “plausível” e instigante.
A ideia inicial de Os grandes carnívoros é mostrar as perturbações de uma mulher que ficou presa por ter sido uma das pessoas a atear fogo em um laboratório que fazia experimentos com animais lá nos Estados Unidos da América do Norte. No entanto, o texto dá voltas, ora se aproxima e ora foge do tema que aparentemente se constitui como um trauma para a personagem.
O que me aproximou do texto [e do significante] no início da narrativa foi justamente isso, a construção do texto como uma elipse que faz o leitor se questionar qual é o real sentimento da personagem acerca dessa questão. Porque não fica claro se a culpa é exatamente aquilo que ela sente, mas ao mesmo tempo ela age de modo evasivo, nos permitindo conhecer fragmentos das suas ações e ir juntando e tentando elaborarmos [tal qual a estrutura de um trauma].
A relação com a natureza da qual deveríamos fazer parte
Tem um paralelo interessante que é construído acerca de um artigo de uma revista que relata a experiência de um cara que sobreviveu num ataque de tigre. O homem relata que viu o tigre passar por ele e ir direto ao seu amigo. Ressoa ali perguntas acerca da “culpa” que ele poderia sentir no momento em que escolhe deixar o amigo para trás. É claro, o ato do homem, anteriormente, havia sido abraçar o tigre, e o animal supostamente não teria compreendido aquele gesto e deixado ele de lado e partido em direção ao amigo. Mas me pergunto, enquanto leitor desconfiado, se esse gesto de “abraçar” não seria um símbolo de cumplicidade. E é interessante como isso vai ressoar em Adelaide, a protagonista do romance, que parece abraçar certas ideias sem necessariamente refletir as consequências destas. E também serve para nós leitores nos perguntarmos quais escolhas temos feito e como isso impacta outras vidas [não necessariamente vidas humanas].
Minha experiência de leitura deste romance foi atravessada por várias questões… que às vezes me fazia pensar sobre a relação com a natureza da qual deveríamos fazer parte, mas também me fazia ficar numa tensão absurda em relação à isso [como no dia em que fui perseguido por um cachorro solto na rua; ele avançava em minha direção, latindo, como se quisesse dizer que eu havia atravessado uma fronteira invisível que para ele era como o seu “território”, o que me pareceu ridículo, pois eu passava naquela calçada todos os dias e o fato dele viver ali não dava o “direito” dele avançar em mim. Mas, ao mesmo tempo, fico pensando nessas guerras em curso mundo afora: elas também não são baseadas em territorialidade e em fronteiras invisíveis? E nessas guerras não só se “avança” com latidos, se avança com armas bem mais letais].
Sobre a volatilidade da literatura contemporânea
Confesso que não gostei da leitura em seu aspecto de construção de personagem: ficava o tempo todo me perguntando se fazia sentido eu, em Salvador, com todos os problemas de segurança dessa cidade, com todo o caos que está o mercado de trabalho aqui, e com todas as dificuldades que enfrento no dia a dia, seguir lendo a história de uma ativista que tinha sido presa nos EUA.
Segui a leitura. O que de certo modo foi bom. E também ruim. As experiências de leituras são sempre múltiplas. Por um lado estava achando tudo muito distante da realidade. Por outro lado, eu me questionava se no íntimo não era isso que eu procurava na literatura, o diferente, o que não fosse igual à minha experiência. Sigo me perguntando ainda. Fico com a impressão de que não havia muito a ser contado sobre essa personagem e a autora optou por ir dando umas camadas estranhas a essa história, até o ponto dela colocar a situação em que a personagem é vítima de um crime e não há desdobramentos acerca daquilo… Enfim, entendi que não era uma questão a ser desenvolvida e que a narração escolhe colocar como mais uma experiência vivida daquela personagem, mas que de alguma forma a move para outro lugar, para outras escolhas, e outras histórias.
Os grandes carnívoros passa ao largo de ter sido uma das melhores leituras do ano. No entanto, tem uma coisa interessante do ponto de vista de quem se interessa pela “volatilidade” da literatura contemporânea. No sentido da constante mudança mesmo. Há algo que permanece daquilo que chamamos de “contemporâneo” [do ponto de vista formal], mas também há o diferente: elipses, movimentos, escolhas.
Leia também: Uma promessa vazia de que tudo ficará bem: uma ‘resenha’ para ‘Triste não é ao certo a palavra’, de Gabriel Abreu.
Os Grandes Carnívoros,
de Adriana Lisboa
Alfaguara, 2024.
Romance, 176p.