Rita de Podestá é a convidada do mais recente episódio do Podcast O Odisseu. Aline Félix e Ewerton Ulysses Cardoso conduziram uma conversa que girou em torno de ‘Zaranza’ (Reformatório, 2021). Nesta matéria, você confere duas resenhas do mesmo livro. Ewerton e Aline destacam os pontos que mais os interessaram no livro.
‘Zaranza’, por Aline Félix
Você sabe o que é Zaranza?
Parece nome de álbum musical do Caetano Veloso, não acha? Ou quem sabe alguma expressão dele:
– Hoje tô meio zaranza (ler com a voz do Caetano).
Mas não, não tem nada a ver com Caetano (ainda, podemos dar a dica). Zaranza é o nome do livro de contos de Rita de Podestá.
E o que significa Zaranza? Você tem duas opções para descobrir:
1- A opção óbvia: Procurar no Google;
2- A opção arriscada: Ler o livro.
Mas calma, é arriscada apenas se você tiver pouco tempo, pois, depois de ler o primeiro conto do livro, que é justamente o que dá nome à obra, você irá se encantar com a sagacidade da escritora. Logo estará imerso no próximo conto, e assim, quando se der conta, estará vivendo na pele de mulheres diversas, se perderá em suas perdas, afundará em seus sofás, e fará eco em seus vazios.
“Zaranza” reúne contos intensos, com aquela pitada do não dito, que deixa o leitor preencher as lacunas, uma verdadeira delícia!
O livro contém 10 contos distribuídos em 120 páginas, onde o tempo e os objetos também se tornam personagens importantes.
Um exemplo é o próprio conto “Zaranza”, onde a contagem do tempo é crucial. Preste atenção nos detalhes, pois, como já mencionei, a autora é ardilosa e nem sempre escreve o que está dizendo.
Em relação aos objetos, no conto “Céu de Janelas”, Rita fala sobre o esvaziar de um relacionamento através deles, ela escreve:
“Foi preciso a repetição para eu entender que o pronome não foi um erro. E quando você disse a sua varanda, era como se você já soubesse que era preciso direcionar meu olhar para fora, para que eu me distraísse dos outros cômodos que você aos poucos encheria com móveis que não eram meus, a não ser essa mesa de canto vermelha, tão no canto que ninguém vê.
Às vezes eu queria ser uma mesa de canto vermelha.”
Em cada conto de Rita, percebemos a ampla pesquisa que faz sobre o tema abordado. Em “Fermata”, por exemplo, ela descreve o violino com precisão:
“- O som produzido pelas cordas é transmitido para o corpo oco do violino, que se chama caixa de ressonância. E é a alma que liga o tampo superior ao inferior e faz o som vibrar por todo o instrumento. Alma? É o cilindro de madeira que fica do lado direito do cavalete.”
Outro conto que me acompanhou por dias, com aquele pensamento de : o que aconteceu depois? Foi “Deve ser assim”, esse é um conto sobre os duplos, abordando escolhas e destino, cuidado e desalento, vida e morte.
Morte é um tema bastante presente nos textos e Rita sabe falar de forma poética, como em “Estiagem”, onde uma filha fala sobre a perda da mãe, esse conto encerra o livro:
“Felicidade é projeto distante com possibilidades de falhas. Meu hábito é de natureza diversa. Não quero que passe. Não sentir dor será matar afogada a lembrança que boia. Desconheço a extensão do tempo. Com quantos hojes já se fizeram essa manhã? O tempo, quando chega, parece que já passou, e a morte, quando vem, precisa nos convencer de que é real. Não sei explicar a ausência se não a vejo. Tenho em mim, submerso, o que eu não sei dizer. Palavras só me saem secas, enxutas, estanques, áridas, desérticas. Tenho no dizer só o obrigado insincero para cada pesar que me concedem. Insistem em me dar flores ignorando a primavera cancelada.”
Lindamente dolorido.
Os outros contos que não mencionei, não o fiz por descaso ou por achá-los menos interessantes, mas para deixar alguns elementos surpresa. Afinal, você vai ler, não vai?
“Zaranza” é uma obra que cativa pela sutileza e profundidade de suas histórias. Com contos que nos fazem refletir sobre os relacionamentos e as perdas, Rita de Podestá nos convida a enxergar a vida pelos olhos de personagens multifacetadas e intensas. Deixe-se levar por essas narrativas e descubra por si mesmo o que significa “Zaranza”.
‘Zaranza’ por Ewerton Ulysses Cardoso
A beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio tom, nessa incerteza.
Lygia Fagundes Telles
Ao conversar com Rita de Podestá, disse que ela tinha um traço “lygiano” bem vivo. Assim como Lygia, Rita não parece estar tão interessada naquilo que é certo, único ou de fácil classificação. Não está interessada em fazer de seus personagens moralmente bons ou moralmente maus. Na verdade, a dubiedade é marca frequente em praticamente todos os contos de “Zaranza” (2021, Reformatório), sua estreia como contista.
Para uma estreia, a autora se apresenta muito madura. São contos que mostram inúmeros pontos de vista, chaves de interpretação. Além da dubiedade que já mencionei, é comum encontrar personagens que parecem estar nos enganando ou escondendo algo de nós, seus leitores. Isso deixa muito mais interessante a leitura, uma vez que recebemos a tarefa de investigar aquilo que a voz narrativa nos diz.
Na maioria das vezes, a voz narrativa diz pouco.
Isso demonstra também que Rita é uma autora consciente do que está fazendo com seu texto. Acho esse um ponto importante de se tocar numa crítica ou resenha hoje em dia, quando eu sinto que os escritores têm pouca dimensão dos caminhos que a própria narração lhes propõe. Pelo contrário, Rita chega com muita ciência desses possíveis desdobramentos. Seus personagens estão sempre sugerindo coisas, deixando a cargo do leitor uma interpretação moral de si. E a moral, nós sabemos, é sempre um ponto de vista.
Comecemos então pelo primeiro conto, que é o que dá título ao livro. Sabemos pouco do que está acontecendo quando o conto começa e a voz narrativa nos informa pouco. Portanto, chegamos à história como quem tateia móveis no escuro. Nos é informado que um casal se separou. A mulher, que narra a história, está em outra casa, uma casa nova. É dito que a cidade é São Paulo. Que não consegue dormir à noite por causa dos pernilongos e que é supersticiosa: espelhos quebrados são sinais. E sabemos que acabou de terminar um relacionamento. Não sabemos bem como, não sabemos bem quanto tempo estiveram juntos. Apenas acompanhamos a personagem levando a blusa do antigo amor para um ritual de encantamento.
Em minha enumeração dos fatos, deixo isso mais apresentável do que de fato está no texto. Na verdade, o conto surge no formato de entradas de diário em que a narração crua dos feitos nos é dada. Não há nenhuma explicação do porquê a personagem faz o que faz. Essa narração crua, como uma câmera documental, é absurdamente instigante. E o final de “Zaranza” é um dos melhores finais de contos que já li.
Pode um crítico literário elogiar muito?
Outros contos merecem destaque, embora todos sejam interessantes à sua maneira. “Calo” é perturbador. A narração em primeira pessoa de uma mulher ao descobrir e negar o diagnóstico de esterilidade foi uma leitura que me provocou agonias. Enquanto lemos os desdobramentos da recepção desse diagnóstico, nos parece claro, a nós leitores, o que está sendo posto pelo óbvio, ao passo em que a voz narrativa nos apresenta justamente o contrário de tudo o que parece óbvio. Essa confusão de vozes é muito bem construída e o final sem respostas ocupou a minha mente por um tempo.
“Risoto com Shoyo” também é um dos meus favoritos. Um casal num encontro “romântico” (?) prepara um risoto que leva shoyo (?) em ocasião claramente esquisita. Notamos que há no ar um estranhamento entre os personagens, algo que não é dito para o leitor, mas que é óbvio entre os dois.
Apesar de Rita construir personagens em primeira pessoa, quase nunca esses personagens estão falando dos próprios sentimentos. Elas (pois são mulheres) sublimam os sentimentos como quem não quer contar e então não nos contam explicitamente. É nas entrelinhas desse estranho discurso narrativo que encontramos segredos irresistíveis.
Mais para o fim do livro, os contos vão ganhando uma carga sentimental acachapante. É de terminar aos prantos. Os últimos dois contos, especialmente, são muito sensíveis e por isso precisam do recurso da frase mais filosófica e das aberturas do melodrama. São bons contos. Mas prefiro quando Rita brinca de ser sádica. Há uma perversidade em contos como “Zaranza” que me fez desejar mais narrativas assim. Porém, há que se elogiar (novamente): a versatilidade é para poucos.
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