A convite da Revista O Odisseu, o escritor e professor Tônio Caetano escreve sobre a mais nova lista de obras obrigatórias para o vestibular da UFRGS.
Ao tomar conhecimento da lista de leituras obrigatórias para o vestibular UFRGS 2025, vários pensamentos me ocorreram.
Abro já um parêntese: fui servidor técnico-administrativo da UFRGS de 2013 a 2019. Estar do lado de dentro do balcão da Universidade – sobretudo no período de investimentos em programas como o Ciências Sem Fronteiras ou mesmo do início e/ou aprofundamento das discussões sobre cotas nas diversas instâncias da universidade a exemplo da pós-graduação -, ampliaram meu olhar sobre o papel social da universidade pública. Mas, por razões do destino, exonerei-me da UFRGS na véspera do momento em que Bolsonaro ignora o desejo legítimo da comunidade universitária e nomeia Carlos Bulhões, terceiro colocado no pleito eleitoral, para reitor. Fecho o parêntese.
Quando observo a emergência da censura tanto no que se refere ao “O avesso da pele”, de Jeferson Tenório, quanto na obra “Outono de carne estranha”, de Airton Souza, o perigo é pensar que são casos isolados. Ou situações apenas do meio literário. Não são. Todo dia há diversos atos de censura acontecendo, mesmo que isso não chegue ao conhecimento do grande público. Esse processo vem de muito longe: é filhote, no meu entender, de todo um sistema colonial que segue bem vivo, articulado e sedento em produzir exploração.
Então vem a UFRGS, em meio a este turbilhão, e manda um recado: aqui não!
Algumas pessoas podem estar certas em pensar que foi um ato isolado, outras estão esperando o efeito backlash, eu faço parte do grupo que entende que fazer mais de vinte mil vestibulandos terem algum contato com livros da envergadura de “O avesso da pele” é um ato de impacto. Posso imaginar o som do ranger dos dentes podres dos racistas letrados, seres criminosos que têm pavor da arte enquanto reflexão cidadã.
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Mas penso que seremos míopes se apenas nos atermos à presença de “O avesso da pele”. A lista traz “Niketche: uma história de poligamia”, de Paulina Chiziane. Livro incrível em que questões culturais africanas, poligamia, machismo e a força das mulheres em busca de autonomia estão no fronte. Que bela conversa será a de Chiziane com Ruth Guimarães e seu “Água funda”. E com Angélica Freitas. E até com Sophia de Mello Breyner Andresen. Mesmo Júlia Lopes de Almeida, que, apesar de muitos senãos, traz na sua trajetória um contraponto histórico interessante de se conhecer sobre os bastidores da fundação da Academia Brasileira de Letras (ABL). Já leram a tese de Michele Asmar Fanini sobre a presença das mulheres na ABL?
Alegria ver “Mas em que mundo tu vive”, de José Falero, presente. Crônicas que nos colocam no miolo do pensamento sobre a vida, seus lirismos, suas revoltas e saídas na periferia. E que belo encontro será da leitura dos textos de Falero com as letras das canções de Lupicínio Rodrigues. E, de alguma forma, com as várias histórias de Machado de Assis.
E que respiro ter por mais um ano “A terra dos mil povos”, de Kaká Werá. A nossa Pindorama, a terra das palmeiras, agradece. Os indígenas são as vozes mais censuradas ainda hoje. Justamente as vozes locais, os conhecimentos que mais precisamos ouvir para compreender o tombo que essa terra tomou quando se torna Brasil. Se é possível apontar algo negativo nesta lista, para mim, é a falta de outro texto para dialogar com Werá, para ampliar a reflexão sobre os saberes, sobre a literatura, dos povos indígenas.
E canceriano que sou, dentre tantas alegrias, uma tristeza daquelas de fundo de cena me acenou ao escrever estas linhas: os vestibulandos deste ano não lerão “Ponciá Vicêncio”, da Conceição Evaristo.
Despeço-me aqui saudando esse ato de compromisso da Universidade Pública. Exemplar feito a imagem de 20 mil velas que acendem diante da noite artificial inaceitável.
Conheça Tônio Caetano
Tônio Caetano nasceu em Porto Alegre/RS, em 12 de julho de 1982. É escritor, especialista em Literatura Brasileira pela PUCRS e servidor público municipal. É filho de Virginia e Armindo, pai da Safira e dindo do Guga, da Sarah e do Ique. Cresceu correndo com os seis irmãos pelas lombas da Vila Vargas, periferia de Porto Alegre. Acadêmico da Academia de Letras do Brasil, seccional Rio Grande do Sul, cadeira 136, Patrono Lima Barreto. Autor do livro “Terra nos cabelos”, Editora Record, Prêmio SESC de Literatura 2020 na categoria Conto, e do livro “Sobre o fundo azul da infância”, Editora Venas Abiertas, Prêmio Academia Rio-Grandense de Letras 2021 na categoria Narrativa Curta. É uma pessoa em busca da própria voz, do seu lugar na luta que cabe a cada um diante da página em branco, da realidade e de si.
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