“Censura a ‘Diário da Cadeia’: Arte não é realidade”, por Daguito Rodrigues

‘Diário da Cadeia’ Censurado: Uma obra artística não é a realidade, mesmo que se utilize de elementos dela. Por mais que seja verossímil, ela não é real. Sugerir esse raciocínio é um retrocesso.

O escritor Ricardo Lísias, autor de ‘Diário da Cadeia’. Foto: Marcos Vilas Boas / Divulgação.

Por determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, o livro “Diário da Cadeia” (Editora Record, 2017), do escritor Ricardo Lísias, foi retirado de circulação por uso indevido do nome do ex-deputado Eduardo Cunha. 

A obra é um falso diário especulativo em primeira pessoa que traz na capa o título, “Diário da Cadeia”, e o nome do autor, Eduardo Cunha, com a palavra “pseudônimo” destacada logo abaixo, indicando claramente que se trata de uma autoria fictícia.

A alegação do ministro é que o livro induz o leitor ao erro, configurando violação ao direito à honra e à imagem do ex-deputado. 

Há alguns anos eu assistia “House Of Cards” com uma amiga quando ela se disse impressionada em como os políticos americanos andam sempre arrumados. Eu me assustei, afinal, a série é uma ficção — que nem utiliza nomes de políticos reais. 

Um outro amigo comentou que adorou “The Crown” por descobrir que a rainha Elizabeth II teve participação ativa nos bastidores de grandes momentos da geopolítica. De novo, eu me assustei. A série, apesar de baseada em fatos, é uma obra de dramaturgia, portanto, de ficção — mesmo que se utilize de nomes e elementos de personalidades reais.

Mais recentemente, o filme “Rotten In The Sun”, dirigido por Sebastián Silva, foi protagonizado por ele mesmo, atuando como um diretor de cinema de mesmo nome, também chamado Sebastián Silva — que inclusive morre ainda na primeira metade do filme. Não preciso dizer que se trata de uma ficção.

Ficção e realidade sempre se confundiram na arte. Praticamente toda obra artística usa da verossimilhança para representar o real. No audiovisual, muitas vezes essa verossimilhança é alcançada pelas Regras do Universo da obra, que é o que permite que a gente aceite o Super-Homem voar e Baby, o porquinho, falar. Obviamente, apesar de verossímeis, esses filmes são obras ficcionais. Assim como o livro de Lísias.

“O Brasil está atrasado na discussão da autoficção”, diz Daguito Rodrigues sobre “Diário da Cadeia”

Na Literatura não é diferente. Nas últimas décadas, vimos nascer ao redor do mundo um gênero literário chamado autoficção, que combina fatos autobiográficos com elementos ficcionais. Nenhum desses textos é a realidade, até porque, nada escrito é capaz de dar conta do real. Nossas vidas não têm curvas dramáticas e nós não somos personagens tridimensionais com apenas um trauma no passado e um único objetivo.

Marguerite Duras escreveu autoficção há muito tempo e, mais recentemente, Annie Ernaux venceu o Nobel de Literatura com uma vasta obra nesse gênero complexo — e ainda pouco comentado e compreendido no Brasil, mesmo que a gente tenha uma longa lista de escritores adeptos dele, como o próprio Lísias (“Divórcio”, “O Céu dos Suicidas” e “Uma Dor Perfeita”). 

Eu mesmo lancei “Tudo Que Se Rompe Quando Cai” no ano passado (Opera Editorial), em que utilizo da minha experiência com a morte de dois grandes amigos logo no início da pandemia para entregar uma obra artística literária.

O Brasil ainda está atrasado nessa discussão. Claro, vivemos num país em que atores que interpretam vilões em novelas correm risco de apanhar nas ruas, enquanto atrizes que vivem mocinhas inocentes são tratadas como pessoas puras e de reputação ilibada. O brasileiro acha que participantes de reality shows são eles mesmos na TV e que apresentadores improvisam falas, sem ler roteiros em teleprompters. Nosso país acredita em mamadeira de piroca e ET de Varginha, mas isso não é motivo para alegar que um livro de ficção especulativa confunda o leitor. Toda obra seria barrada sob esse argumento.

Vimos recentemente a série ficcional “Senna” receber críticas por supostamente não ser fiel à realidade. Ora, nem documentários ou biografias são, pois apresentam uma fatia do real, uma versão, uma tese, a partir de UM olhar. Uma obra ficcional, então, nem se fala.

O problema é que muita gente confunde nossos tempos de pós-verdade com o questionamento da liberdade artística. As Fake News não têm nenhuma relação com a arte. Como diz o nome, são NOTÍCIAS falsas. Elas confundem porque se apresentam como fatos, distorcendo a realidade. Servem para manipular a opinião publica criando uma nova (e falsa) versão do real. Elas enganam sem aviso prévio.

“A arte não é a realidade”

A arte não é isso. Ou alguém questiona se Leonardo Da Vinci realmente voltou no tempo e acompanhou ao vivo à suposta última ceia de Cristo para criar a renomada pintura? 

No caso do livro “Diário da Cadeia”, como já dito, a palavra “pseudônimo” logo abaixo do nome do autor fictício explica que o escritor atribuído à obra é ficcional. Portanto, ela é uma obra artística de ficção especulativa. A decisão pelo recolhimento das cópias pressiona e coloca em risco a liberdade do artista, criando um precedente perigoso.

O próprio Google, numa busca pelo título da obra, indica entre parênteses que se trata de uma obra de ficção.

Em momento algum é falado que o ex-deputado Eduardo Cunha escreveu o livro. O nome dele nem é citado dentro da obra. Sabemos que não foi ele, está dito na capa. Assim como o espectador de “Rotten In The Sun” não acredita que o diretor do filme, Sebastián Silva, dirigiu a cena da própria morte e ainda deixou que a obra fosse lançada postumamente.

Uma obra artística não é a realidade, mesmo que se utilize de elementos dela. Por mais que seja verossímil, ela não é real. Sugerir esse raciocínio é um retrocesso. A criação artística não pode ser censurada por uma visão desvirtuada da arte — afinal, nenhum crime foi cometido.

Muitas matérias, ao comentar o caso de “Diário da Cadeia”, citam que em “Divórcio”, livro publicado em 2013, Lísias usou trechos de um suposto diário de sua ex-esposa na trama, simplesmente pelo fato do protagonista e narrador da obra, de mesmo nome do escritor, dizer que o fez. De novo: obra de ficção não é realidade, por mais que pareça.

Em tempos em que a Inteligência Artificial tem acesso a toda a obra artística já criada e é capaz de produzir novas versões destas, a partir da combinação de elementos das que já existem, eu acredito que as criações artísticas autoficcionais ou especulativas sejam caminhos interessantes para o futuro da arte. Talvez os únicos a longo prazo.

Claro que o escritor Ricardo Lísias já disse que prepara uma obra sobre o caso de “Diário da Cadeia”, eu faria o mesmo. E aguardo ansiosamente para ler.

Conheça Daguito Rodrigues, autor convidado

Daguito Rodrigues é escritor, roteirista e diretor. Já escreveu projetos para a Rede Globo, GNT, Netflix, entre outros. Dirigiu curtas-metragens, documentários e videoclipes. É autor do livro “Tudo Que Se Rompe Quando Cai” (Opera Editorial, 2024), além de mais de vinte e cinco contos publicados em antologias com outros autores.

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