A poesia da Bruna Mitrano quer que o diálogo aconteça, ela fala em “a vida é assim”, “eu tô brincando de verdade”, e como brincar de verdade sem uma linguagem que é de verdade?

Morei a sonetos do mar, a decassílabos do mar, a palavras raras, rimas ricas do mar. Morei a Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Raimundo Correia do mar. Morei a troiano, a meu pai escreve da cadeia, a samba-canção do mar e já podia ver a água balançando meio confusa na minha miopia. Morei a noventa e seis páginas ou a “Ninguém Quis Ver”, ou a Bruna Mitrano do mar e aqueles dois montes de areia na calçada do seu vizinho, e aquele barulho de água do valão diante da sua casa, e aquele gosto de sal na sua boca, e aqueles dois montes de areia nos seus olhos me revelaram que a boa poesia pra gente é o mar que a gente reconhece a água e, por isso, se diverte e tem saudade do rebuliço. Você mora a setenta quilômetros do mar e, mesmo assim, me trouxe até esse mar e agora acordo todos os dias com os dois pés dentro da água por não aguentar de saudade.
Bruna nasceu e cresceu no Complexo de Senador Camará, periferia do Rio de Janeiro. É escritora, professora e mestre em literatura pela Uerj. Publicou seu primeiro livro em 2016 chamado “Não”, pela Patuá, e, em 2023, publicou pela Companhia das Letras, “Ninguém Quis Ver”, semifinalista do Prêmio Oceanos no ano seguinte, e que foi o livro que me trouxe três coisas especiais: a própria Bruna, a possibilidade de amar poesia e a necessidade de escrever algo que acima de tudo queira dialogar com as pessoas. O poema a que fiz referência acima, “a setenta quilômetros do mar”, abre, além do seu livro, minha mente pouco receptiva, naquele momento, a versos, apesar de uma batidinha, uma espiadinha ou outra nessa porta com “Céu Noturno Crivado de Balas” de Ocean Vuong e “A teus pés” de Ana Cristina César.
“A poesia da Bruna Mitrano é uma senhora de 70 anos que vive em Bangu mandar um áudio dizendo como se relacionou com o livro”
Por muito tempo disse e mantenho que a poesia é a forma mais particular da literatura, ela não tem espaço para te convencer como tem a prosa, então dialogar com o leitor me parece algo mais difícil de ser feito com a poesia do que com a prosa, porque o diálogo envolve emissão e resposta, e como responder aquilo do qual não se tira um entendimento? Quando digo resposta e entendimento, não estou me referindo, definitivamente, a algo restrito ao racional, eu falo disso e/ou sobre essas respostas automáticas que são absolutamente irracionais e, ao meu ver, as mais importantes. E a poesia da Bruna quer que o diálogo aconteça, ela fala em “a vida é assim”, “eu tô brincando de verdade”, e como brincar de verdade sem uma linguagem que é de verdade? A poesia da Bruna é uma senhora de 70 anos que vive em Bangu mandar um áudio dizendo como se relacionou com o livro.
“O ‘não” é um livro que eu sinto que não chega a dialogar da forma que eu gostaria. Então, nesses sete anos que separam o ‘não’ do ‘ninguém quis ver’ eu comecei a trabalhar essa voz poética pensando em para quem eu gostaria de falar […] Eu quero falar para essas pessoas, eu quero que os meus vizinhos tenham acesso a isso. Eu não entendo porque uma poesia de fácil entendimento […] é considerada uma poesia ruim.” (Bruna Mitrano em Entrevista para Eliana Alves Cruz no Canal Brasil)
Eu pensei desde o lançamento em formas de falar sobre o que se trata “ninguém quis ver”, e nunca consegui formular algo, além de sempre achar que aqui o “para quem” fosse mais importante. Penso hoje que a Bruna fala do que é tornado invisível para quem é tornado invisível, e o que é tornado invisível é a vida dessas pessoas. Ela escreve para quem na maior parte do tempo não tem nome próprio, as pessoas anônimas que vivem no centro como todo mundo, mas colocadas de lado por quem tem nome.
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