‘Borrasca’, de Rita Santana, coloca-nos diante da certeza de que a matéria-prima da poesia é a vida em suas miudezas ou nos seus espetáculos diários.
Explicar poesia é inútil, bem disse Hilda Hilst. Ouso acrescentar que, além de inútil, é uma tentativa obtusa de limitar o “ato poético” às normas que segam, ceifam, a potencialidade significativa das palavras. Não tomarei para mim tal responsabilidade. Por isso, debruço-me sobre Borrasca, obra da lavra da poeta, atriz, escritora e professora Rita Santana, com a humildade de quem abraça a fruição em detrimento de qualquer tentativa tecnocrata de explicações. Não é um livro fácil, aviso! Para quem espera uma poesia fluida e amena, tropeça em uma tempestade de ideias que, por vezes, podem soar confusas aos desavisados. Porém, ao longo da leitura (que pode ser corrida ou vagarosa, ao gosto do leitor), notamos que, tal qual uma borrasca, a impetuosidade amaina-se, dando lugar a doçura e a compenetração da maturidade. Sim, é um livro da maturidade e de todas as dores e delícias que ela traz, principalmente para uma mulher. Notamos nos versos que o Eu lírico coloca-se em constante reflexão acerca do mundo, de suas saudades, incertezas e erros, mas não com culpa e arrependimentos. A vida passa diante dos seus olhos e, ciente da sua impossibilidade de resolver todas as coisas, derrama nas palavras a paixão com que encara o mundo, ainda que essa paixão possa revelar-se pessimista.
“Sinto a falência do vigor,
Rita Santana, no poema “Verônicas” (p.18)
a falência da crença;
já nada espero,
além da exuberância
de uns orgasmos que,
momentaneamente,
arruínam o ceticismo”
A crônica poética desvela-se diante dos nossos olhos, conduzindo o leitor pelas encruzilhadas de referências fílmicas, religiosas ou por notícias de ontem que enchem a nossa televisão diariamente. Estaríamos diante de uma “Flâneur”? Ou apenas de alguém sensível o suficiente para encontrar beleza em um “Entelognathus primordialis” “fossializado” nos mares de Qujing? Borrasca coloca-nos diante da certeza de que a matéria-prima da poesia é a vida em suas miudezas ou nos seus espetáculos diários. É a humanidade de uma mulher negra que se arremete “à precipitação da Arte”, embora certa de que tentam sufocar a sua lira, negando-lhe os espaços, enfiando-a em “armários empoeirados” do nosso triste Brasil. É um livro convite, que embora não nos deixe confortáveis em nossa busca por respostas, adentra a curiosidade, deixando a nu as nossas arrogantes certezas sobre tudo. Pisamos em falso, tateando com o espírito as brechas que o Eu lírico nos permite e que aparecem, vez ou outra, nas dedicatórias, nas epígrafes ou em citações aparentemente despretensiosas no decorrer dos versos. Há a pungência de um erotismo sutil, entremeado pela deliciosa naturalidade com que os temas brotam, sem necessidade de notas de rodapé. Mas, reitero, não é um livro fácil. Não entrem na Borrasca sem proteção contra abalos sísmicos possíveis. Afinal, o eu lírico deixa claro que vive “num paiol”, cercado pela possibilidade de explosões, já que “O mundo é um armazém de pólvora”. Todavia, não tema a aventura da leitura. Deleite-se.
E viva ao agosto dos não nascidos. (Eu, p.50)
Capa do livro “Borrasca”, de Rita Santana (Villa Olívia Artes & Livros, 2024). Compre aqui.
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Obrigada, Carol! Foi um prazer ter sido lida de uma maneira profunda e rica por você!