‘Avenida Beberibe’, novo livro de Claudia Cavalcanti, representa uma época de ‘escritas de si’ e presenteia os leitores com uma belíssima autoficção.
Em seu novo livro, “Avenida Beberibe” (Fósforo, 2024), Claudia Cavalcanti (autora de “A Vida dos Outros e a Minha” – Cultura e Barbárie, 2021), apresenta a foto enquanto o elemento capaz de costurar a narrativa de sua própria infância na cidade do Recife e também a história de sua família. É uma escolha estética da autora que consegue inovar dentro de um estilo de narrativa amplamente conhecido pelos leitores: o livro de memória.
São muitos os clássicos livros de memória, sobretudo os que buscam resgatar a infância dos autores. No Brasil, talvez o mais célebre desses livros seja o “Anarquistas, Graças a Deus” (Companhia das Letras), de Zélia Gattai. Na obra canônica de Gattai, encontramos o retrato de uma família italiana que aportou em solo brasileiro para “fazer a América”. Semelhantemente, no livro de Claudia encontramos a narrativa, embora fragmentada, de sua própria família de judeus na cidade do Recife.
Como mencionava, a autora consegue inovar ao entregar de forma generosa novos elementos capazes de fazer a leitura mais interessante sem deixar de ser um livro de memórias. Um desses elementos é a própria ficção que se entrelaça no texto, tornando difícil dizer qual a ficção mais próxima ou mais distante da realidade.
O mistério das fotos
Não é incomum que livros de memórias possuam fotos. Na verdade, espera-se que esses livros com personagens reais consigam, ao menos, nos apresentar esses personagens por meio das fotografias. Sendo assim, não há nada de inovador em dizer que “Avenida Beberibe” vem numa edição com muitos registros fotográficos em suas páginas.
No entanto, enquanto que as fotos nesses outros livros são mero adereço estético ou uma forma de fazer o leitor visualizar esses personagens, em “Avenida Beberibe”, as fotos parecem exercer diferente função.
Ao invés da foto ser um elemento posterior à história, Claudia opta por nos contar a história a partir das fotos. Ou seja, a análise da vida acontece por meio da análise da foto. Isso possibilita que o leitor tenha a sensação de ser um pesquisador que se debruça sobre “pistas” de uma antiga civilização, de um antigo povo.
Nesse sentido também, a narrativa não linear, na qual adentramos sem saber ao certo de que se trata ou de quem se fala, colabora para que tenhamos, por meio da reunião das pistas, a descoberta que se espera.
Assim, se as fotos parecem, por um momento, desconexas, ao longo da leitura do livro, conseguimos fazer as conexões necessárias para relacionar de quem se fala ou com quem fala. Afinal, o livro também apresenta um interlocutor – por meio de uma narrativa em 2ª pessoa, sempre se referindo a um “você” – que também começa a fazer sentido a partir do momento que lemos as “pistas” que a autora deixa aqui e acolá.
É uma ótima forma de se criar uma narrativa memorialística. Isso porque é possível que esse livro seja um livro de memórias ou uma ficção. Claudia conseguiu fazer, com maestria, um livro que consegue sugerir mais do que dizer. Em tempos de uma literatura que se orgulha de ser “palatável”, “Avenida Beberibe” não poupa o leitor do mistério e, justamente por isso, consegue construir uma narrativa tão envolvente.
A Foto: Uma Ficção
Uma família é feita de fotos. Sobre isso, Susan Sontag escreve:
“Cada família constrói, através da fotografia, uma crônica de si mesma, uma série portátil de imagens que testemunha a sua coesão. Sejam quais forem as atividades fotografadas o que importa é que as fotografias sejam tiradas e guardadas com carinho.”
Susan Sontag no livro “Ensaios Sobre Fotografia”, p. 18.
Antes, neste mesmo ensaio, “A Caverna de Platão”, Sontag escreve que fotografar é um “rito social”:
“Não fotografar crianças, particularmente quando são pequenas, é um sinal de indiferença dos pais, do mesmo modo que não posar para uma fotografia de fim de curso é um ato de rebeldia adolescente”.
Susan Sontag no livro “Ensaios Sobre a Fotografia”, p. 18.
Ao longo de todo ensaio, Sontag nos diz que as fotos apresentam uma dupla natureza: a de ser uma representação aparentemente fidedigna da realidade, mas também a de ser interpretação. Ora, nenhuma foto é a realidade. A foto é uma foto. Sontag dá destaque ao fato de que cada foto envolve um enfoque, que nada mais é que um ponto de vista.
Portanto, assim como toda memória é ficção, sempre editada pelos nossos sentimentos, toda foto também é uma ficção. Logo, Claudia nos oferta uma interpretação dos tempos de outrora. A simplicidade, o afeto e a inocência se sobressaem dentro desse recorte. Os fatos obscuros referentes à época, tais como a desigualdade social, o racismo e a ditadura, são trazidos ao texto por meio de uma informação “externa”.
Trata-se de interpretações da autora/narradora que surgem já com a distância do tempo. A criança não sabia que as entradas diferentes de sua casa, uma para os empregados e outra para os familiares, era fruto de uma desigualdade social e de uma arquitetura hostil. Foi, com o tempo, que a autora desenvolveu essa noção e, no texto, tece a crítica.
Qual o nome da sua saudade?
De fato, assim como aquilo que não é fotografado não é “real”, aquilo que não nos é apresentado como memória, não pesa no texto. Ficamos com a sensação de que os tempos anteriores eram melhores quando, sabemos, não foram.
Claro que isso não é um defeito do livro, especialmente por se tratar de uma escrita mais interessada em passar aos leitores as impressões de uma criança na cidade do Recife. Não é necessário um compromisso com a verdade do tempo. No entanto, é fato que a autora preferiu destacar o que, naquela época, existia de verdadeiro e belo e simples. É uma escolha de recorte da narrativa, da mesma forma que a escolha da narrativa sobre os sofrimentos na época da ditadura também é um recorte. Em ambos os casos, se trata de ficção.
Todavia, cabe pensar. O que encontramos na narrativa, é uma Recife muito diferente da atual, cercada pelos prédios e grandes construções que surgem por meio do avanço do capitalismo predatório e da especulação imobiliária. A crítica (sutil) de Claudia é que a cidade, em tempos em que o distanciamento das grandes construções padronizadas e sem vida não existia, era mais acolhedora.
É uma crítica interessante e que cabe. Por outro lado, a ausência da crítica mais ferrenha aos problemas da época (pois o tempo não era perfeito) faz o livro beirar o saudosismo alienado. É como dizer “antigamente era melhor” sem se pensar em “para quem era melhor”. Nesse sentido, o livro funciona mais como uma crítica à nossa relação com a vida, com o tempo e com as pessoas, no caos do neoliberalismo, que ao sistema em si, já que o capitalismo também operava na época da infância de Claudia.
O imaginário infantil
“Avenida Beberibe” é livro bonito como a vista de um vale florido do alto de um morro em uma manhã nebulosa. A neblina nos impede de ver, com clareza, a vista que passa a ser apenas uma sugestão. Ainda assim, o que vemos é belo. É um oásis em meio a uma série de leituras áridas e que despertam pouco de nossa imaginação.
Acima de tudo, é um livro repleto de fantasia, embora não caia no fantástico. O que fisga o leitor é a reprodução da aura de inocência e ternura advindas da infância. É a fantasia que torna o mundo belo, mesmo quando a realidade é cruel. Veja, o fantástico aqui não é um mistério, é o sonho, é a simplicidade de uma criança que, como todas as outras, confunde os limites entre o real e o imaginário.
Além disso, a autora busca fazer o retrato de sua própria família, contando a história de seus antepassados por meio do recurso das fotografias. Que delícia observar as fotos como um detetive que busca identificar, na semiótica da imagem, a interpretação, a verdade oculta.
Além das fotos propriamente ditas, o livro é repleto de imagens belíssimas que surgem no texto mediante minuciosas descrições de eventos, sentimentos e pessoas. É uma homenagem às pessoas e aos objetos que, igualmente, ocupam o espaço físico e imaginário.
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