A Convite da Revista O Odisseu, a mestranda e pesquisadora da obra de Paul Auster Ayla Cedraz escreve sobre a morte do grande autor estadunidense no último 1º de maio.
Auster morreu. Todas as vidas que ele escreveu, seu corpo longo e magro debruçado sobre uma folha em branco, uma máquina de escrever (não me deparei com indícios seus escrevendo num computador, embora seja de se imaginar), onde quer que tenham dado, a quem quer que tenham encontrado, como me encontrou, não encontram, nunca, o fim. É curioso pensar que seu criador não ganha essa imunidade. Ele não estava salvo, o que é óbvio, mas não minou minha imensa estranheza ao saber de sua morte.
Com que pensamentos segui a manhã de feriado? O dia segue, é avassaladoramente imperioso, a vida caminha sobre a morte, como sempre fez. É diferente o deixar de existir de um escritor, um ator, um artista de que se gosta. É uma espécie de flutuação melancólica, envolvida pelo que sabíamos dele, pelo que nos fez gostar, e, no caso de Auster, eu só pensava no quanto ele colocou de si em seus personagens, nas “coincidências” entre elementos de sua biografia e as narrativas. Mesmo o rosto deles, a cada livro, eu imaginava com um ou outro traço de Auster: o nariz fino e longo, meio pontudo; os olhos fundos, de pálpebras grandes, meio cansadas, meio entediadas, meio sedutoras; o cabelo penteado para trás, deixando ver as longas entradas calvas; a boca de lábios finos, meio severos e de sorriso contido, não mais que uma reação de agrado — como será a gargalhada de Auster? Há muito que não se sabe, e aí está a sutileza entre o escritor e o homem, algo que não alcançam mesmo os seus livros de memórias, que tanto leio.
Entre tantos pensamentos possíveis, na manhã seguinte à notícia, parece que permaneço na reflexão de que a premissa de 4321, uma de suas últimas publicações, sempre me aponta para a complexidade que é viver neste mundo, e tenho achado que talvez seja a que melhor representa toda a sua obra, a relação forte com os acontecimentos por acaso, com a ideia de família, com a escrita criativa e a memória. Diferente da visão que Auster nos oferece ao mostrar possibilidades de vida de seu protagonista, Ferguson, com essas ou aquelas circunstâncias, nós só temos acesso a nossa única possibilidade. Esta vida que não é alternativa, só é, e acaba. Não há passos para trás, não há como terminar em outro ramo da figueira, como divagou Plath. Quer essa ideia pareça empolgante ou insatisfatória, bom, há sempre a literatura.
Sobre a autora convidada
Ayla Cedraz é graduada em Letras Vernáculas-Inglês pela UFBA e mestranda em Literatura e Cultura pela mesma universidade. No programa, estuda o livro de memórias A Invenção da Solidão, de Paul Auster, e as relações entre biografia e ficção. Crê com convicção que a palavra “leitora” deve estar em qualquer perfil seu e se sente atraída desde sempre pela ideia de escrever, e, por isso, escreve.
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Bom texto.