A convite da revista O Odisseu, Kátia Borges, Márcio Junqueira e Henrique Júlio Vieira escrevem sobre a poesia e a pessoa de Cicero em relatos emocionantes e pessoais.
Receber a notícia da morte de Cicero certamente foi um golpe para a manhã de quarta-feira. O poeta fez a trilha sonora de milhões de brasileiros, pelas vozes de Bethânia, Calcanhotto e, principalmente, Marina Lima. Mas há algo maior que isso na figura de Cicero (se é que pode haver algo maior para um poeta que ouvir sua poesia reverberar na nação), que é a sua própria pessoa.
Cresci acostumado com o rosto de Cicero na tevê, nos jornais, sempre falando coisas importantíssimas e lúcidas que, com o tempo da maturidade, começaram a ser mais reais para mim. Hoje, li suas últimas palavras lúcidas como todas as demais. Mesmo na morte, Antonio Cicero fala algo novo, provoca inquietações em todos nós com a decisão de escolher a sua própria morte e o próprio destino de sua vida.
Fico pensando no que pensou Antonio Cicero em seus últimos momentos de vida sabendo que eram seus últimos momentos. Será que sorriu ao lembrar da vida brilhante e que contribuiu tanto para a vida cultural de seu país? Será que chorou de tristeza, de saudade precoce da vida? Será que enfrentou com coragem, sem retroceder? Ou será que, no último momento, decidiu desistir e já não havia mais tempo?
Todas essas perguntas são inúteis agora quando tudo o que resta é a poesia viva e imortal que sobrevive e sobreviverá às intempéries do tempo. Para celebrar Cicero, convidei três autores para pensar a obra do autor em diferentes perspectivas. A seguir, você lê textos de Kátia Borges, Márcio Junqueira e Henrique Júlio Vieira sobre Antonio Cicero:
‘Como se um rádio sintonizasse o dial dentro do coração’, por Kátia Borges
Estava saindo da faculdade, após as aulas desta manhã, quando uma aluna correu em minha direção, celular nas mãos, para me dar a notícia da morte do poeta Antonio Cicero.
De imediato, como se um rádio sintonizasse o dial dentro do coração, começou a tocar Inverno, que tantas vezes escutei na voz de Adriana Calcanhotto, trilha sonora de amores vãos.
Os olhos se encheram de lágrimas enquanto seguia rapidamente até o estacionamento para evitar explicações e comoções. Como iria me justificar? Como explicar que aquele poeta, que me chegou pela voz de Marina Lima, como ondas que alcançam uma praia, representava muito para mim?
Estranhezas de uma professora que, todos os alunos sabem, tem lá suas esquisitices. Nunca o conheci de perto, sequer o entrevistei, como jornalista de cultura. Cicero em minha vida até então era a mais perfeita tradução de Guardar, poema seu que tanto me tocou e me toca.
Guardar uma coisa é olhá-la,
fitá-la, mirá-la por admirá-la,
isto é, iluminá-la ou
ser por ela iluminado.
Preservei com paciência essa chama entre as mãos, vasculhando na memória outras canções guardadas. E são tantas. Uma para cada fase da existência. E cheguei em casa e postei a Canção da Alma Caiada, a primeira que Marina Lima musicou.
Tento afogar no mar
O fogo em que quero arder.
Li a carta deixada por Cícero em um misto de tristeza e de admiração.
Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.
E voou.
Kátia Borges nasceu em 1968, em Salvador, Bahia, Jornalista, mestre em Teoria e Crítica da Literatura e da Cultura pela Universidade Federal da Bahia, trabalhou no jornal A Tarde, na Bahia. Autora dos livros De volta à caixa de abelhas (As letras da Bahia, 2002), Uma balada para Janis (P55, 2009), Ticket Zen (Escrituras, 2010), Escorpião Amarelo (P55, 2012), São Selvagem (P55, 2014) e O exercício da distração (Penalux, 2017).
‘Seus versos já tinham moldado minha subjetividade’, por Márcio Junqueira
o antonio cicero já era um dos meus poetas favorito antes mesmo d’eu saber que ele era poeta. sou devoto de marina, a irmã-parceira-primeira do cicero. suas palavras são parte fundamental da minha educação sentimental. tanto nas canções com marina, quanto com outros parceiros (la calcanhotto, joão bosco, caetano, orlando morais, lulu santos, artur nogueira, frejat…). seus versos já tinha moldado minha subjetividade quando fui descobrir sua figura: lendo verdade tropical, a autobiografia de caetano, onde ele fala longamente do encontro dele com cicero na inglaterra e os impactos que esse encontro teve na vida dele no retorno de londres. cicero demorou a juntar seus poemas em um livro. acho que é de 1996 ou 97, guardar, seu primeiro livro. eu li e reli muitas vezes esse livro e me identificava totalmente com as deidades gregas ambientadas no posto nove.
encontrei pessoalmente o cicero poucas vezes. ele foi um colaborador-incentivador do coletivo bliss no nosso primeiro projeto em 2008 (a revista bliss, que saiu pela 7letras em 2009). cedeu dois poemas inéditos pra nossa revista e recebeu o coletivo no ap que ele vivia com o marcelo pies para gravar vídeos lendo esses poemas – que serviram como modo de divulgação do nosso projeto. mais tarde quando o coletivo mudou de nome e fez uma segunda revista, que era na verdade um cd-duplo, o cicero chegou junto outra vez e gravou duas faixas para gente. e foi lá na uerj ler poemas no dia do lançamento do nosso disco-revista.
acho que foi alguns dias antes desse lançamento na uerj que eu e lucas matos fomos jantar com ele no bar lagoa. eu e luc éramos bem arturo belano/ulisses lima nessa época e estar com o cicero, pra gente, era meio como se esses personagens pudessem tomar uma cerveja com nicanor parra. falamos e falamos de poesia e música popular e bebemos e bebemos e perguntei um monte sobre o waly. foi nesse dia que o cicero apresentou o alex varella pra gente. no fim da noite quando chegou a conta altíssima, antes que eu e luc pudéssemos começar a contar nossas moedas, o cicero muito discretamente pagou a conta. foi um gesto acolhedor e elegante, sem afetação ou demagogia. voltando exaltados no 438 eu, e acho que luc também, tinha certeza que não podia existir nada mais bonito no mundo que ser poeta.
acho sua morte muito coerente com seu projeto existencial- poético.
vai fazer muita falta.
Marcio Junqueira é poeta e artista visual. Doutorando em Artes Visuais no PPGAV da UFBA com projeto sobre masculinidades negras e homoerotismo, desde 2005 desenvolve trabalhos, em torno de temas como: homoerotismo; escritas de si; e autoficção. Integra (juntamente com Clarissa Freitas, Lucas Matos e Thiago Gallego) o coletivo ‘ Bliss não tem bis’. Atua, desde 2012, com professor de Literaturas em Língua Portuguesa no campus XVIII da UNEB. Vive em Salvador.
‘Antonio Cicero, polígrafo de fato e de direito’, por Henrique Júlio Vieira
Com o charme discreto que se tornou uma assinatura, Antonio Cicero nos fez cantar amores tórridos, sem estar à frente dos holofotes necessariamente. Por detrás do palco, as palavras do poeta deram forma e linguagem às artimanhas, ambiguidades, enlaces e hesitações que recebem o ser amado. A memória traz aqui dois exemplos, “À Francesa” (Marina Lima, Próxima Parada, 1989) e “Inverno” (Adriana Calcanhotto, A Fábrica do Poema, 1994): “Meu amor, se você for embora / Sabe lá o que será de mim / Passeando pelo mundo afora / Na cidade que não tem mais fim”; “Não sei o que em mim / Só quer me lembrar / Que um dia o céu reuniu-se à terra um instante por nós dois”.
Antonio Cicero, polígrafo de fato e de direito, realizou um conjunto de obras significativas nas áreas da poesia, da música e do ensaio filosófico. O sujeito desejante que flameja na sua obra poética tudo observa o que as paisagens do Ocidente ou da praia de Ipanema lhe apresentam, para então fazer com que se encostem, até certos pontos de indiscernibilidade, a literatura e a música, a filosofia e a atividade poética, o vivido e o imaginado. A carta aos amigos talvez seja o seu último ato filosófico. Trazida ao público pelos veículos de imprensa, nos incita a refletir sobre a vida, em sua complexidade, até meandros que ainda fazem o Ocidente se assombrar.
“Antes morrer de vez ou viver
que desgastar-se feito agora ante os barcos
contra homens ignóbeis”
(“Canto XXIII: Desafogo”, em Guardar, 1997)
Henrique Júlio Vieira é professor de literatura. Doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada na UFMG.
Leia Também: ‘Auster morreu — sobre o acaso, a vida única e a literatura’, por Ayla Cedraz