Alegria indefinível 

O mundo, há muito, já não é o lugar seguro da minha infância, quando as “bençãos” da ignorância faziam tudo parecer mágico. Ou dito de outro modo: quando o saber instintivo da criança, fazia ver todas as mazelas da realidade com olhos de esperança.

“Lydia Seated in the Garden with a Dog on Her Lap”, de Mary Casset (Reprodução).

Olho as nuvens cinzentas sobre o rio. O bordado de um bando de pássaros, que fogem da tempestade iminente, interrompe o fluxo dos pensamentos. À poesia da imagem, mistura-se uma sensação aflita. Preciso escrever, mas as ideias voam tal qual as aves. Do emaranhado de notícias, lidas antes do café da manhã, vislumbro o mesmo céu nublado que assustou os passarinhos. O mundo, há muito, já não é o lugar seguro da minha infância, quando as “bençãos” da ignorância faziam tudo parecer mágico. Ou dito de outro modo: quando o saber instintivo da criança, fazia ver todas as mazelas da realidade com olhos de esperança.

Aqueço a água do chimarrão e retorno ao notebook. Os assuntos se misturam e continuo em busca de um tema para minha escrita. Se um caderno de rascunho onde não há espaço para as frases que surgem no meio da noite é ruim; a página em branco, sem uma ideia original que a complete é muito pior. Volto ao confuso cenário descrito pelo noticiário do dia. Busco inspiração. Tentativa inútil. Na pauta, guerras, terrorismo, crise climática e outras manchetes. Tudo parece mais cinza e meu único desejo talvez seja resgatar aquela menininha curiosa, reflexiva e esperançosa que ainda deve habitar algum lugar em mim.

No meio desse pequeno drama matinal, reviro as memórias de infância. Lembro da garotinha que narrava mentalmente suas brincadeiras. Brincava sempre acompanhada de longos roteiros mentais, como se estivesse dentro de um livro ou filme. Construía histórias e personagens. Descrevia cenários e enredos fantásticos. E quando estava cansada de seus imaginários mundos, lia muito. Entrava em mundos alheios, construídos nas páginas dos grandes clássicos. Lembro dessa mesma menina, sentada sobre os galhos bifurcados de uma grande figueira, descobrindo as infinitas possibilidades da palavra. Ah! Quem nunca leu um bom livro balançando-se nos generosos braços de uma figueira, deveria fazê-lo pelo menos uma vez na vida. Como deveria! Até hoje, recordo com alegria indefinível a delícia de ler, sob a sombra da copa, ao balanço suave da árvore em movimento. Árvore transformada, por algumas horas, em poltrona viva e pulsante a abraçar aquela pequena leitora ávida de conhecimento e diversão. Abraço que nos tornava, naqueles momentos, um ser único, integrado dentro da grande mãe natureza. 

“Descrever tudo com sinceridade íntima, serena, paciente”

(Continua após a imagem)

O escritor Rainer Maria-Rilke (Reprodução)

Recordar aqueles dias nos quais acompanhava meu pai à granja, apenas para passar as tardes na companhia da grande árvore e de meus livros favoritos, me fez esquecer, ainda que momentaneamente, das tragédias cotidianas, estampadas nas páginas de notícias. Curiosamente, resolveu também meu dilema acerca do assunto (ou da falta dele) para essa crônica. E lembrou uma passagem do livro “Cartas a um jovem poeta”, na qual Rainer Maria Rilke recomenda, ao jovem Franz Kappus, que deveria “acolher” os temas de “seu próprio cotidiano”. E, ao fazê-lo, deveria “descrever tudo com sinceridade íntima, serena, paciente”, utilizando, para se expressar, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de sua lembrança.” E, acrescenta: “caso o seu cotidiano lhe pareça pobre, não reclame de si mesmo, diga para si mesmo que não é poeta o bastante para evocar suas riquezas.”

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