A máquina de fazer brancos: uma leitura ‘O Embranquecimento’, de Evandro Cruz Silva

“O embranquecimento”, estreia de Evandro Cruz Silva no romance, é um livro impossível de se passar ileso especialmente para quem é um corpo marginalizado no ambiente acadêmico.

O escritor e sociólogo Evandro Cruz Silva, autor de “O Embranquecimento” na FLIP 2024. Foto: Rafaela Araújo/Folhapress.

O que ninguém te disse sobre o universo acadêmico, aquilo que ninguém te contou sobre o ingresso na universidade, o que se apaga da trajetória de pessoas racializadas e socialmente marginalizadas pela sociedade ao entrar na universidade. Isso tudo é o que Evandro Cruz Silva quer te contar em “O Embranquecimento”. Prepare-se para uma leitura desconfortável.

“O Embranquecimento”, romance de estreia de Cruz Silva na ficção (vale lembrar que o autor foi duas vezes vencedor do Prêmio de Ensaísmo da revista Serrote), procura dar conta de uma problemática de nosso tempo: a vida de pessoas negras na universidade e a realidade de exclusão e racismo que está oculto na instituição.

A máquina universidade

O intelectual, ativista indígena e imortal da Academia de Letras Ailton Krenak. Crédito: Alexandre Muniz – Fogão de Lenha Filmes

Digo que é um tema precisamente de nosso tempo porque não é possível falar desse texto sem retomar às recentes estatísticas de que hoje a maioria das pessoas na universidade são pessoas negras (embora seja possível questionar esses dados se considerarmos as possibilidades de fraudes em ações afirmativas e coisas semelhantes). Geralmente, vemos com bons olhos esse movimento. 

A esperança floresce ao pensar que há apenas algumas décadas os números não estavam nada perto disso. No entanto, não podemos esquecer o fato de que qualquer fenômeno social vem repleto de contradições e também que qualquer transformação na vida de um sujeito possui em si, inerentemente, o potencial de gerar dor. É assim com o amor, por exemplo. Quando nos apaixonamos vivemos algo mágico e (esperamos) majoritariamente feliz. No entanto, há, no oculto do romance, a eventual tristeza e eventual dor, nem que seja a dor de se despedir por alguns dias da pessoa amada. 

Com isso quero dizer que a universidade, assim como qualquer ambiente, é um fator de transformações na vida de alguém e essas transformações podem ser boas ou ruins, sendo, na maioria das vezes, boa e ruim ao mesmo tempo. O pensador Ailton Krenak disse uma vez: “a universidade é uma máquina de fazer brancos”. Krenak questiona a pseudointegração que a universidade propõe aos indígenas. Se por um lado as ações afirmativas trazem consigo a possibilidade de ingresso no ambiente acadêmico a indígenas, por outro, há uma descaracterização extrema do sujeito indígena em relação à sua ancestralidade. 

Ao ingressar na universidade, o indígena deverá conhecer um novo método de ciência, novas metodologias de aquisição de conhecimento, novas leituras de mundo e construir o seu discurso a partir de materiais essencialmente ocidentais. O resultado, Krenak denuncia, é que todos nós saímos da universidade falando uma mesma língua que é a língua do projeto modernizador. Portanto, podemos concordar: a universidade ainda está pouco plural com a entrada de grupos marginalizados, uma vez que todos esses grupos precisam aprender a dançar conforme a dança da ciência ocidental.

Feitas essas considerações iniciais, vamos ao livro.

Uma pintura de Modesto Brocos

“A redenção de Cam”, pintura de Modesto Brocos.

O livro é narrado em primeira pessoa pela personagem Macária: uma pesquisadora, professora e intelectual negra com devido reconhecimento na academia como historiadora da arte. Macária é uma mulher que podemos ler como “parda”: é uma mulher inconfundivelmente negra, mas de tom de pele mais claro dada a miscigenação em sua família: sua mãe é uma mulher negra e o seu pai um homem branco. Macária ingressa na universidade e isso parece ser uma mudança de paradigmas na história de sua família e para isso basta considerar que a sua mãe era faxineira na universidade.

Como pesquisadora, Macária tem uma obsessão completa pelo quadro de Modesto Brocos “A redenção de Cam”: a obra de arte do século XIX busca representar as teorias de embranquecimento vigentes naquela época que em muito se relaciona com a agenda positivista. 

O quadro mostra uma mulher negra retinta e velha agradecendo a Deus pelo nascimento de seu neto branco, filho da sua filha que foi uma negra de pele mais clara. Portanto, a obra mostra que foram necessárias duas gerações para “embranquecer” a linhagem. O quadro faz referência ao mito bíblico de “Cam”, filho de Noé que, segundo a tradição cristã-judaica, teria dado origem aos povos africanos. No texto bíblico, Noé amaldiçoa a descendência de Cam a ser um povo “escravo” ou “servo” de outros povos. Por muito tempo, essa passagem no texto bíblico foi o suficiente para justificar a escravidão pelo Vaticano e o Papado.

Perceba que a própria personagem Macária parece fazer uma referência a isso. Em relação à sua mãe, ela tem um tom de pele mais clara, sendo a sua mãe também mais clara em relação à geração anterior. A diferença é que Macária, pelo exercício da ciência, toma muita consciência disso. Notamos na personagem uma rejeição a essa ideia de embranquecimento, um posicionamento ético perante as teorias eugenistas. Prova disso é que Macária tem uma filha também negra, filha de um relacionamento que ela teve com um homem negro. No entanto, nada é simples.

Macária é apaixonada por uma jovem branca alemã com quem tem um relacionamento paralelo em relação ao pai de sua filha. Ficamos, na verdade, com a impressão de que a personagem escolheu bem este homem com quem teria a filha. Ele é um homem negro que ela mesma vê como agradável, admirável e bonito. 

No entanto, a alemã por quem se apaixona, Hannah, é quem de fato é alvo de seu afeto. O texto deixa, nas entrelinhas, o próprio desconforto dessa situação. Evandro constrói isso de modo muito sútil. Por exemplo, Macária acusa Hanna de ser “controladora”, o que parece ser a reivindicação de alguém que vê na outra uma tentativa de captura e subordinação. O relacionamento entre Macária e Hanna é atravessado por estranhamentos, por inquietações, por um incômodo que não é nominável. 

Sem demonizar ninguém, tampouco apelar para uma leitura um tanto simplista de evidenciar situações de racismo, Evandro prefere mostrar como a ferida aberta do colonialismo (para citar Grada Kilomba) ainda exerce influência sobre os corpos e sobre os afetos. De fato, o estranhamento nessa relação é decorrente de uma série de vivências totalmente diferentes que as personagens experimentaram. Ainda assim, o modo como ambas conseguem desenvolver o amor e desviar dessa situação é bonito.  

Laços de Família

A trama começa com a necessidade de retorno de Macária à sua realidade anterior ao árduo reconhecimento científico. O retorno acontece em razão do falecimento de sua mãe, a quem Macária muito amava. A cena do funeral desencadeia flashbacks torturantes, especialmente quando Macária vê chegar ao funeral o seu pai, um homem a quem ela quis evitar durante muitos anos. 

Na narrativa, o pai de Macária, Claudio, é como uma pedra no sapato da personagem. Ele é um bêbado, usuário de drogas, a quem Macária sempre tentou “salvar” ou minimamente “resgatar”. Muitas vezes, essas tentativas de resgate custaram a perda de algumas oportunidades na vida, pois ela precisava culpar o pai. A relação rompida entre os dois acaba por se tornar uma mágoa explícita e sem garantia de recuperação. Ah, um detalhe importante sobre Claudio: ele é um homem branco. 

Com qualidade e talento literário impressionantes, Evandro Cruz Silva desenvolve a personagem Macária tão repleta de complexidades e contradições que são possíveis de se ler e de se compreender quando ampliamos o leque, quando entendemos como a raça é um fator determinante para ditar como nós nos relacionamos, como nós enxergamos o mundo, como nós amamos. A personagem parece depositar sobre o pai toda a raiva que, na verdade, tem como alvo as pessoas brancas. Claudio lembra a Macária a origem de suas dores. A lembrança da infância traumática ante a figura desse homem por vezes autoritário, por vezes distante e ausente, pode ser lido como a lembrança traumática do desprezo que uma pessoa negra vive. Em determinado momento, inclusive, Macária vai apontar a mãe como culpada também, mas não especificamente pelos traumas, a mãe é culpada por se casar com ele.

“Quem é você, mãe, para reclamar sobre homem ruim? Quem é você para questionar com quem eu saio? Homem ruim, homem ruim… Aquele bêbado entrando em casa de madrugada, entra aqui por quê? Ele tá invadindo a casa ou você não prestou atenção naquele homem ruim?”

Trecho da página 109.

Muitos livros em um

Perceba como ao tocar em apenas alguns pontos, eu consigo mencionar uma série de problemáticas que, se fizéssemos um trabalho de dissecação, daria inúmeras teses. O amor interracial, a demonização da raça e do culto negro pela religião evangélica, os incômodos que a personagem vive por ser uma pesquisadora negra na universidade (sempre precisando se autoafirmar enquanto tal) são apenas alguns dos temas que o autor toca. 

Se posso fazer uma crítica se deve ao fato de que muitas dessas questões são apenas tocadas no texto. Evandro complexifica muito a teia de seu romance, mas muitas problemáticas (como a crítica ao culto evangélico que demoniza a religiosidade afro-diaspórica, por exemplo) são pouco desenvolvidas. As pessoas que são familiares ao tema conseguirão facilmente entender a problemática, bem como acatar as sugestões. 

Esse não é, necessariamente, um defeito do texto, talvez um desabafo sobre um leitor que ficou com muita vontade de ver um autor tão talentoso desenvolver esses temas com a propriedade que ele provou ter. Ainda assim, vale destacar que ao introduzir muitas questões de uma vez, o leitor tem pouco tempo para refletir com a profundidade necessária tudo o que é posto à reflexão. Assim, a leitura deste livro foi muito longa para mim. Várias vezes eu precisei interromper a narrativa não por não entender, mas por precisar refletir mais sobre o ponto. Isso pode ser tanto um convite à uma leitura reflexiva e densa, quanto uma denúncia de que o ensaísta está muito presente na escrita do texto.

Em todo caso, “o embranquecimento” é um livro impossível de se passar ileso especialmente para quem é um corpo marginalizado no ambiente acadêmico. O modo como a personagem Macária não consegue relacionar o que compreende em teoria com aquilo que vivencia enquanto um ser humano que (como todos), fica em evidência na dinâmica dos afetos. Essa dualidade tão bem construída é um feito surpreendente para um autor estreante.  A dor de Macária em compreender as desigualdades e a violência sempre a coloca num duelo entre desenvolver um compromisso ético com a sua militância anti-racista e o desejo de simplesmente viver.

Evandro quer jogar luz sobre as cobranças que são feitas ao intelectual negro, do qual se espera quase sempre a perfeição ética, a postura de combate constante. O livro, no entanto, humaniza esse intelectual que é aqui representado por Macária, apresentando o quão difícil é se adequar a uma episteme ocidental que é maniqueísta e, portanto, opressora. Uma episteme que tem sempre só duas opções, mas que não dá conta de compreender a densidade do ser humano dual e até mesmo múltiplo – “exuístico” para citar Denise Carrascosa.

Para nós (sim, o texto me permite que neste momento me inclua nesses que decidiram se aventurar na máquina de moer diferenças que é a universidade), a universidade e a intelectualidade é ao mesmo tempo algoz e herói. Mas eles nunca vão entender.

“O embranquecimento” é um dos melhores livros de 2024 segundo a revista O Odisseu! Clique aqui para ver lista completa.

O Embranquecimento,
de Evandro Cruz Silva.
Editora Patuá 2024.
182pp.

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