Marina Colasanti não sabe como foi importante para mim ler aquelas palavras num momento em que eu batalhava com a dúvida, talvez minha pior inimiga.
“Leu em Descartes que certo é duvidar de tudo,
até encontrar algo de que não se possa mais
duvidar. Decidido a seguir o ensinamento,
duvidou dele. E começou a confiar.”
- Marina Colasanti em “O bom Conselho”.
Conheci Marina Colasanti tardiamente. Não tive o privilégio de lê-la na escola e nem tive acesso aos seus livros enquanto crescia da mesma forma que tive os de Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro e Castro Alves (a tríade da literatura baiana presente nas escolas públicas do estado).
A conheci em algum momento depois de fundar a Odisseu, antes dela ser premiada com o Prêmio Machado de Assis, de modo que pude celebrar a entrega da merecida homenagem. Lembro de ver no jornal o seu depoimento ao saber do prêmio: “Acho que mereci, tenho uma obra vasta” ou coisa assim. Há quem poderia dizer que ela não foi modesta ao dizer que merecia, mas ela de fato merecia. Na verdade, foi modesta em não dizer “demoraram, hein!”.
Ao longo de uma carreira de décadas, Marina Colasanti transitou entre gêneros e foi uma apaixonada pela palavra. Esteve no jornalismo e ali entrevistou Clarice Lispector (entrevista junto ao seu marido Affonso Romano de Sant’Anna que está disponível no Podcast da 451). Fez traduções, poesia, contos e minicontos. Em sua bibliografia estão livros infantis, para adultos, livros que são verdadeiras obras de arte.
Mas Marina me conquistou antes que eu tivesse lido a palavra escrita. Na fala, a elegância da prosa oral, perfeita concatenação e lucidez das ideias, fez com que eu ficasse apaixonado. Vi algumas entrevistas dela no YouTube em que ela fala, especificamente, da questão das mulheres e da literatura. Ela provocava o entrevistador com comentários a respeito de ideias tão amplamente presentes na sociedade, como o caso do mito da “literatura feminina”.
‘Ao ler aquele miniconto e ter minha epifania clariciana, decidi escrever a ela. Estava certo que escreveria.’, escreve Ewerton Ulysses Cardoso sobre Marina Colasanti
Ao longo dos anos me encontrei com o texto de Marina tantas vezes assim como a sua imagem que eu utilizei para fazer diversos conteúdos para a revista. Mas o meu encontro principal, certamente, foi o encontro por meio da leitura. Seu livro “Hora de alimentar as serpentes” foi um acontecimento na minha vida. Até então, eu confesso que tinha preconceito com mini ou microcontos. A ideia do pouco desenvolvido realmente nunca me atraiu, sobretudo quando a brincadeira entre as palavras para formar ritmo era um pouco previsível. O livro, no entanto, me surpreendeu. Os diversos microcontos de Marina estão interessados em provocar, em questionar, em colocar-nos em posição de leitura estendida: seguimos lendo seu texto mesmo quando ele termina. O conto “O bom conselho”, presente neste livro, me veio em um momento importante.
Marina não sabe como foi importante para mim ler aquelas palavras num momento em que eu batalhava com a dúvida, talvez minha pior inimiga. A figura de Descartes, para mim, era algoz. Foi Marina quem conseguiu, talvez, desmistificar esse bicho-papão que me assombrava e me encheu de coragem. Acho, principalmente, que ela conseguiu me fazer ver a mim mesmo como alguém possível de questionar até mesmo os que questionam e de valorizar o meu próprio pensamento e minhas próprias verdades.
Ao ler aquele miniconto e ter minha epifania clariciana, decidi escrever a ela. Estava certo que escreveria. E me peguei pensando nessas histórias de escritores amadores que enviam suas cartas aos escritores. Lembro, inclusive, que consegui seu endereço através de um amigo que tinha os contatos.
Não lembro o que aconteceu para que eu não escrevesse a carta. Talvez o tempo tenha passado e minha libertação me possibilitou viver a vida e não ficar preso a rituais. Ao saber de sua morte, agora há pouco, pensei na carta e me vi agradecido. Não pude dizer isso a ela e tampouco acredito na possibilidade dela receber meus agradecimentos num pós-vida. Ainda assim, não me sinto de todo culpado. Jogo as palavras ao vento em busca de que elas cheguem a quem deva receber, como as de Marina chegaram a mim.
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