Exatamente hoje, 21 de abril de 2025, poderíamos dizer que não há livro mais atual do que As botas de Pedro, romance de estreia de Lino Vili Moura Ribeiro, escrito em 2018 e publicado em 2024 pela Editora Coralina.

Além das semelhanças e interessantes coincidências (sim!) com o filme Conclave, do diretor Edward Berger, que também estreou em 2024 e recentemente ganhou um Oscar, vivemos agora – na nossa realidade, e não apenas na ficção – a mesma situação do livro e do filme: a morte do papa e a Sé vacante.
(Um pequeno parêntese para lembrar do carismático argentino Jorge Mario Bergoglio, que deixará saudades: primeiro papa latino-americano, escolheu para seu pontificado o nome do santo dos pobres, Francisco, e durante doze anos, por meio de diálogo, tolerância, diplomacia, simplicidade e franqueza, lutou por justiça social, tentando implementar mudanças e reformas em várias frentes, acolhendo minorias e colocando em foco a “periferia” do planeta.)

Crédito da foto: Carlos Jorge Céspedes.
Concluído o parêntese, embora ainda entristecidos pela perda de um grande ser humano, nossa pergunta é: quem ocupará o trono de Pedro?
É com essa mesma dúvida que iniciamos a bem-elaborada e também divertida narrativa do psiquiatra Lino Ribeiro: o conclave dos cardeais no Vaticano para a eleição do novo papa.
Por fim, perdidos em meio às próprias dúvidas, entregaram-se à suposta ação divina, e a maioria achou que uma pessoa bem intencionada, capaz de conduzir a Igreja com amor, causaria menos dano que um estadista potencialmente tentado a agir em favor próprio. […] Foi assim que o arcebispo de Olinda e Recife, um gaúcho criado cardeal não havia muito tempo, tornou-se papa.
Perspicaz observador do comportamento humano, Lino Ribeiro cria uma trama fluida com um papa brasileiro – mais precisamente o gaúcho Gaudêncio – em que apresenta os bastidores e as burocracias da Santa Sé, além de aproximar de forma bem-humorada o vocabulário vaticano com expressões gauchescas. Metaforicamente, o novo papa, em vez de calçar as sandálias do pescador, usa botas.
Em meio a cenários como a Capela Sistina e a Basílica de São Pedro, vemos como o arcebispo Gaudêncio encara sua eleição:
Era a última coisa que Gaudêncio queria escutar, ainda que fosse a mais óbvia. Tinha ímpetos de sair dali, como um louco, dizendo que não tinha nascido para aquilo, que só tinha ido para o seminário porque não gostava de enxadas, que nem sabia como tinham achado que ele podia ser bispo ou cardeal, e que tornar-se papa não era para ele.
– João, não sei se tu votaste em mim, mas eu estou falando sério. Eu não sei ser papa. O que eu sei é que está cheio de gente mais inteirada disso do que eu. Essa politicagem do Vaticano, banco, informações, patrimônio cultural, museus, rituais… É muita coisa. E eu sou um grosso!
– Bem que a minha irmã dizia que branco engordava. Estou parecendo uma lona de circo com essa roupa.
Inicialmente cheio de situações engraçadas, como a presença inusitada da sábia mãe do papa na posse, o churrasco comemorativo nos jardins vaticanos (o famoso “costelão de doze horas”), o chimarrão como apoio à cansativa rotina do papado, o “tiro de laço” como atividade física para emagrecer, acompanhamos o novo Sumo Pontífice, sujeito simples, sincero e bonachão, começando a se dar conta de que nunca mais será o mesmo e reagindo às inúmeras pressões externas e internas de seu cargo. Estressado e saudoso da pátria, toma certas decisões que despertam a fúria da Cúria – com o perdão do trocadilho. A partir daí, a narrativa leve e cômica vai adquirindo um tom mais sombrio, melancólico e triste. Como dizem os gaúchos, o leitor começa “faceiro que nem lambari de sanga” e depois percebe que “se foi a égua com o sovéu”.
O texto mescla conhecimento dos rituais católicos (sem ser enfadonho como algumas missas) com diálogos dinâmicos e espirituosos, curtos e grossos, atravessados por uma fina ironia, e prende a atenção do leitor do início ao fim – e que fim!
Com a certeza de que nos próximos dias seremos bombardeados pela mídia com palavras e expressões estranhas e desconhecidas, ler As botas de Pedro hoje pode ser um bom momento para se familiarizar com o tal do decano do colégio dos cardeais, o camerlengo (meu Deus, o que é isso?), acólitos (que diabos!), barrete, pálio petrino, anel de Pedro e por aí vai. E também com piá, petiço, vivente, furdunço, brigadiano – campo semântico da gauchada.
São nítidos dois movimentos na história de Gaudêncio, representando sua ascensão e queda: um é o da enxada para o turíbulo, do chapéu para o solidéu, da bombacha para a casula, e o outro – movimento sem volta – vai da bênção dos cordeiros diretamente para a tosquia das ovelhas. A ambientação da narrativa também segue uma “progressão” interessante: Alegrete-Roma-Porto Alegre-Rio Pardo-Alegrete.
Mas acima de tudo a leitura nos faz refletir sobre a condição humana – sobre nossas decisões e como elas se misturam com o destino de outras pessoas. Conforme diz Leonardo Braziliense na orelha do livro:
O menino Gaudêncio, criado no interior do Alegrete, que se torna padre para escapar da vida dura no campo, como é comum acontecer, um dia se vê nada menos que papa […] e percebe que a própria Igreja talvez tenha se transformado em outra coisa numa sucessão de mudanças, quem sabe tão circunstanciais quanto seu próprio chamado vocacional.
A reflexão é sobre
…nada menos que o conflito entre o essencial e o contingente, numa época em que, de qualquer um, espera-se uma imagem pública moldada já nem se sabe mais quando nem por quem, mas que escraviza a todos nós, que, rodeados de tecnologia e confortos nunca vistos na história, vivemos em algo que As botas de Pedro acertadamente chama de “gaiola de ouro”.
Enquanto aguardamos a fumaça branca e o Habemus papam, nos resta conjeturar se o romance de Lino pode se tornar realidade. Chances, há. Em todo caso, torçamos (e rezemos) para que não haja retrocesso.
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As botas de Pedro, de Lino Vili Moura Ribeiro
Editora Carolina, 2024
Arte de capa de Roberto C. M. Vieira
Romance, 198 pp.
R$ 49,90.


Análise afiada e perfeita! O livro é muito interessante e a tua análise não deixa nada escapar… Quem não leu procure ler, ainda mais no atual contexto.
Parabéns, filha! (posso, né?)