‘A Mariposa’, um conto de Lu Rodrigues

Confira o conto ‘A Mariposa’, conto de Lu Rodrigues que integra a coletânea ‘Mariposas não voam longe’ (Litteralux).

Foto: Museums Victoria (Via Unsplash).

Entrou no quarto do filho e ela estava lá. Sobre a cama, como uma almofada largada na cabeceira: a mariposa marrom. Gigante, com as asas abertas. Era a mesma que tinha aparecido na casa dias antes, quando veio a notícia da morte da irmã. O que ela queria agora? Um arrepio ruim tomou o corpo de Lídia. Não adiantava corrigir o ângulo e buscar a luz para escapar. Ela era agora como uma mariposa presa a um voo em espiral numa lâmpada. De volta ao ponto de partida, ao passado. Lúcia tinha ido embora para sempre. 

As duas não se falavam há vinte anos, desde que a irmã decidiu se mudar para Portugal. Na época, não entendeu porque Lúcia tinha ido para tão longe dela. O abismo já estava lá a cada palavra não dita. E no veneno que Lídia soltava na companhia das outras mulheres da família. “Lúcia tem gênio difícil.” “Lúcia sempre foi desajustada, não gostava de estudar quando era criança.” 

Temperamento ruim, preguiçosa. Era assim que via a irmã caçula e, desde a infância, fez Lúcia acreditar que estava certa. Claro, era a mais velha, bonita e inteligente. Estudou odontologia. Estava destinada a voar para longe dali. Afinal, não queria morrer sem realizar seu sonho: conhecer o mundo. E Lúcia era mesmo uma moça estranha. Gostava de bibliotecas, cheirava livros. Era tímida. Usava uma armação de óculos grossa, que a deixava feia. Vestia roupas tão largas, que quando seus seios começaram a crescer, ninguém percebeu.      

Mas as metamorfoses acontecem com quem a gente menos espera. E da noite para o dia, Lúcia saiu do casulo. Entrou na faculdade de Ciências Sociais e passou a andar com um grupo de estudantes feministas. As amigas elogiavam seus trabalhos de casa. A encorajaram a mudar o visual. Lúcia passou a usar calças jeans justas que torneavam seu  corpo esguio. A bunda redonda e empinada se destacou. Os cabelos cresceram e ganharam cachos cadenciados. As espinhas sumiram e deram lugar a uma pele branca e lisa. 

Apaixonou-se por uma colega de sala e juntas formaram o casal mais popular da faculdade. Participavam de passeatas a favor dos direitos das mulheres. Se envolviam em tudo que era tipo de votação no campus. “Quanta bobagem, Lúcia!”, bradava Lídia. Tudo na caçula era diminutivo: “A Lúcia fica com aquelas coisinhas de protesto na faculdade, enquanto eu sustento a casa!” “A Lúcia arrumou uma namoradinha e agora acha que é diferente!”  

De início, Lúcia parecia ter nos olhos o pó liberado pelas mariposas: não enxergava a perversidade nas palavras de Lídia. Porém, as intrigas aumentaram com os anos. À medida que o brilho da caçula aumentava, a mais velha escurecia. Amargava. E assim, o afastamento entre as duas instalou-se. Ondas silenciosas de dissabor.    

Os pais das duas morreram e os familiares se afastaram. Lúcia e a companheira foram convidadas para dar aulas na Universidade Nova de Lisboa. Aceitaram o trabalho. E o Atlântico separou as duas irmãs. Não se falaram mais. Lídia tocou a vida: casou e teve um filho. Separou-se e manteve as raízes. Montou o consultório de dentista perto do lugar onde cresceram. Foi morar na casa que herdou dos pais. Esqueceu o desejo de conhecer o mundo que agora era todo da irmã. Asas de inseto não voam longe.  

A solidão fez Lídia cercar-se de um bando de bajuladoras. Mulheres que lhe prestavam serviços. A manicure, a cozinheira, a diarista, a secretária. Para todas, queixava-se de Lúcia: “Minha irmã virou sapatão e fugiu com a amante.” “Lúcia é a vergonha da família Imagina, casar com aquela outra e se afastar das pessoas que a amam?”  

Até o dia em que voltou para casa e a viu: a mariposa marrom. Ali, na garagem. Sobre as caixas, com os antigos livros de faculdade da irmã. “Inseto estranho. Como veio parar aqui?” Entrou. Esquentou a lasanha que a cozinheira tinha deixado na geladeira. O telefone tocou, era a parceira de Lúcia. Sem demorar-se, contou que ela tinha morrido num acidente de carro. Lídia recebeu a notícia com uma pancada. Um gemido que lhe tomou o peito e depois o corpo. Lúcia se foi. E não tinha mais volta.  Foram cinco noites de olhos abertos e cinco dias de olhos marejados. Até que a mariposa voltou. Dessa vez, sobre uma almofada no quarto de seu filho. O que ela queria agora? Lembrou-se que as mariposas são atraídas pelo brilho do sol ou de uma lâmpada. Até a morte. No dia seguinte, pegou um avião pela primeira vez na vida. Foi para Portugal.

Lu Rodrigues (@lurodriguesescritora) nasceu em São Paulo e hoje mora em Lisboa. É escritora, jornalista e mãe do Rafael e da Clara. Trabalhou por duas décadas em emissoras de TV brasileiras, como Rede TV!, Band e Record TV. Em 2017, decidiu dar uma pausa no jornalismo para aprender a ser mãe e se reencontrar na escrita. Escreve sobre maternidade, feminismo e autocuidado nas redes sociais – e fora delas também. Em 2023, lançou seu primeiro livro, “Maternidade com autoamor” (ed. Labrador) e, agora em 2025, lançou “Mariposas não voam longe”.

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Mariposas não voam longe, de Lu Rodrigues
Litteralux, 2025
Contos, 125 pp.
R$ 47,00.

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