Entre o final da década de 1920 e o ano de 1945, a curiosidade de um estudioso de gabinete da Rua Lopes Chaves deu lugar à necessidade de se fazer útil para o Brasil enquanto intelectual público.

“É incontestável que sou um sujeito muito ‘consciente’ do que faço. É sempre possível que eu esteja fazendo mais, ou também menos, ou mesmo outra coisa do que pretendo fazer, mas a verdade é que toda a minha obra e meus gestos estão sob o signo do Querer” (a Álvaro Lins, São Paulo, 24-III-42, p. 40). Mário de Andrade (1893-1945) se tornou uma figura incontornável para a cultura brasileira do século XX. Sob o “signo do Querer”, se lançou, dentro das suas possibilidades e limitações, às várias formas de institucionalização da literatura e da cultura. Entre o final da década de 1920 e o ano de 1945, a curiosidade de um escritor de gabinete da Rua Lopes Chaves deu lugar à necessidade de se fazer útil para o Brasil enquanto intelectual público. A viagem a estados do Nordeste, em 1928, pode ser considerada um dos pontos dessa virada, quando transcreveu e comentou uma extensa quantidade de melodias e toadas – os conhecidos “documentos musicais”, um dossiê que pretendia sistematizar as expressões musicais da cultura popular.
“Si trabalho pelo Brasil, é porque sei que o homem tem de ser útil e a pena tem de servir” (a Sousa da Silveira, S. Paulo, 26-IV-35, p. 164-165), e serviu. Não havia Departamento de Cultura em São Paulo, dirigiu a primeira instituição dessa finalidade no município. Não havia órgão de patrimônio a nível nacional, elaborou o anteprojeto de criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional, que daria origem ao IPHAN. Não havia enciclopédia brasileira, fez o anteprojeto da Enciclopédia Brasileira, vinculada ao Ministério da Educação e Cultura. Não havia acervos de escritores, reuniu, em seu arquivo pessoal, manuscritos de terceiros com quem se correspondia, reconhecendo o valor que essas obras iriam adquirir para a história da literatura brasileira. Recorro aqui ao estilo de algumas das suas cartas em que expressa a interlocutores a consciência da sua contribuição individual, para explicitar que o vanguardismo de Mário de Andrade não se encerrou com a autoria de Paulicéia Desvairada (1922), Amar, verbo intransitivo (1927), ou de Macunaíma (1928). As suas atividades de documentação, pesquisa e de gestão em órgãos de cultura a partir dos anos 30 constituíram novos rumos da sua busca apaixonada pela “coisa nacional”.
O abrasileiramento da língua e da literatura, aspecto temático e estilístico da sua produção literária, transformava-se em um projeto de abrasileiramento das instituições, por meio da organização de acervos e fontes documentais sobre a história e a cultura do país. Pouco menos de cem anos atrás, quando o fascismo, a eugenia e o ultranacionalismo eram questões de ordem no debate público, e cogitava-se abertamente a extirpação de afrodescendentes e indígenas da sociedade brasileira, o afã de Mário de Andrade em recolher, documentar e estudar as tradições “móveis” e “imóveis” pode representar um “hackeamento” do circuito político e intelectual do qual também foi beneficiário, mas sem deixarmos de considerar, ao mesmo tempo, os dilemas da sua identificação racial e sexual naquela época.
Este “homem-do-mundo” que, “abancado à escrivaninha, na Rua Lopes Chaves”, declinou os convites para viajar aos destinos tradicionais da intelectualidade brasileira, como a Europa Ocidental e os Estados Unidos, deixou marcas indeléveis na cultura do país. O modernismo, a poesia concreta e a tropicália, por exemplo, se confrontaram com questões muito próximas ao universo mario-de-andradiano, como o localismo e o cosmopolitismo nas artes e a busca da “entidade nacional” em termos não essencializantes. Também vale destacar, a multiplicação do perfil de “escritor-pesquisador” na segunda metade do século XX, que teve em Mário de Andrade um dos seus precursores, embora nem sempre ele tenha visto com bons olhos a imagem de escritor “culto” ou “difícil” atribuída pelos seus contemporâneos. Veja-se o “Lundu do escritor difícil” (1928):
Eu sou um escritor difícil
Que a muita gente enquizila
Porém essa culpa é fácil
De se acabar duma vez:
É só tirar a cortina
Que entra luz nesta escurez.
[…]
Eu sou um escritor difícil,
Porém culpa de quem é!…
Todo difícil é fácil,
Abasta a gente saber.
(A costela do Grão Cão, 2013 [1928], p. 417)
Ou neste tempo de recrudescimento das fronteiras entre as pessoas e de “discussões apaixonadas mortas no dia seguinte”, vejamos a atualidade de Mário de Andrade com o poema “Pela noite de barulhos espaçados…”:
Me sinto culpado de milhões de séculos desumanos…
Milhões de séculos desumanos me fizeram, fizeram-te irmão;
E pela noite de barulhos espaçados
Não quero escutar o conselho que desce dos arranha-céus do norte!
Eu sei que teremos um tempo de horror mais fecundo
Que as rapsódias da força e do dinheiro
Será que nem uma arrebentação…
[…]
Havemos de ver muitos manos passando a fronteira,
Haverá pão grátis muito duvidoso,
As salas de improviso se encherão de discussões apaixonadas,
Mortas no dia seguinte em desastre que não sei quais.
Será tempo de esforço caudaloso,
Será humano e será também terribilíssimo…
(Remate de Males, 2013 [1929], p. 382)

Henrique Júlio Vieira é professor de literatura e pesquisador em acervos literários. Doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada na Universidade Federal de Minas Gerais.
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