100 ANOS DE YUKIO MISHIMA: Saindo de uma sequência de Murakamis, com seus protagonistas austeros mas gentis, e suas aventuras misteriosas do cotidiano comum, eu não estava preparada para a mudança nas marés que viria com o meu primeiro contato com Yukio Mishima.
Eu tinha acabado de ler O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação, do Haruki Murakami, por indicação do João. Também tinha lido Norwegian Wood e Minha querida Sputnik, do mesmo autor japonês, que, por um acaso, fez 76 anos no dia 12 de janeiro de 2025. Como confio de maneira irrefletida em meus curadores do coração – vulgo amigos – a única conduta possível àquela altura era perguntar ao João o que eu deveria ler em seguida. Ele me mandou uma foto de uma edição antiga do livro O marinheiro que perdeu as graças do mar do Yukio Mishima, com o desenho da “Grande Onda de Kanagawa” do Hokusai na capa, e me disse: “lê isso daqui”.
Saindo de uma sequência de Murakamis, com seus protagonistas austeros mas gentis, e suas aventuras misteriosas do cotidiano comum, eu não estava preparada para a mudança nas marés que viria com o meu primeiro contato com o Mishima.
A leitura dos livros do Mishima é, logo de cara, desconfortável. No início da obra, fui confrontada com o retrato de um garoto de treze anos com pensamentos complexos que observa a mãe nua por um orifício na parede durante a noite. Essa violação da privacidade do corpo feminino já é apresentada no livro como forma de punição, mesmo diante da ignorância da mãe. O garoto, chamado Noboru, conta que apenas observava a mãe nua quando ela o repreendia. Nas noites em que a mãe era gentil, ele ia dormir sem observá-la pelo buraco da parede.
O desconforto da leitura vem de pequenos detalhes narrativos como esse do voyeurismo punitivo. Pequenos acontecimentos cotidianos, na obra do Mishima, vêm carregados com um tom opressor, como se houvesse sempre um ar denso no ambiente, que transforma a inocência em perversão, a curiosidade em profanação, a beleza em tragédia. Além disso, como o foco narrativo é sempre muito peculiar, a esquisitice vem da lembrança de que somos e sempre seremos objetos – e nunca sujeitos – dos desejos e perturbações dos outros.
A trama se desenrola ao redor do relacionamento de Noboru com Ryuji, um marinheiro que se envolve romanticamente com sua mãe, Fusako. Noboru possui grandes expectativas em relação a Ryuji, mas não as expectativas comuns de uma criança sem pai em relação a um futuro padrasto. Pelo contrário, Noboru, que representa talvez um ideal de um Japão conservador, puro, movido pelo sentimento de dever, e avesso a sentimentalismos, deseja que Ryuji se comporte como um marinheiro desapegado de bens, romances e laços familiares, e que seja destinado a estar sempre só, junto ao mar. A necessidade de Noboru de fazer com que Ryuji se adeque a seus ideais toma rumos extremos e trágicos, à moda Precisamos falar sobre Kevin.
“Esse tipo de contradição aparente é percebida não só na obra, como na vida de Mishima, que, mesmo sendo homossexual, tinha como ideal se casar com uma mulher e com ela ter filhos.” – Nico Hirata sobre Yukio Mishima
Outro ponto curioso, na obra e na vida de Mishima, é a forma como a homossexualidade e o culto ao corpo masculino aparecem no texto. Em O marinheiro que perdeu as graças do mar, o corpo de Ryuji é percebido por Noboru como uma escultura de proporções ideais, ao mesmo tempo em que o sexo entre um homem (Ryuji) e uma mulher (Fusako) é descrito como a união perfeita. Esse tipo de contradição aparente é percebida não só na obra, como na vida de Mishima, que, mesmo sendo homossexual, tinha como ideal se casar com uma mulher e com ela ter filhos.
Em Confissões de uma máscara, essa dualidade se torna ainda mais evidente. Mishima narra, com brutal honestidade, as memórias de um jovem que descobre sua sexualidade em um ambiente profundamente conservador, onde a máscara social é não apenas necessária, mas vital para a sobrevivência. A narrativa é ao mesmo tempo íntima e distante, como se o narrador estivesse expondo suas feridas mais profundas, mas sem nos permitir chegar perto o suficiente para tocá-las. Há uma constante tensão entre desejo e repressão, entre corpo e espírito, que ecoa nos dilemas enfrentados por Noboru em O marinheiro que perdeu as graças do mar.
Ao terminar Confissões de uma máscara, eu não conseguia deixar de pensar em como Mishima parecia ser, ele mesmo, um personagem de suas histórias. Sua obsessão pela disciplina física, sua busca pelo ideal estético e moral, e, claro, sua morte teatral e planejada com precisão cirúrgica, tudo isso compõe um retrato de alguém que vivia entre o sublime e o insuportável. Ler Mishima é como olhar para um espelho distorcido, onde nossas fragilidades e contradições mais profundas aparecem amplificadas, mas de uma forma impossível de ignorar.
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