‘Os tempos da fuga’, de Giovana Proença é uma estreia ambiciosa, mas não consegue dar uma nuance geral para sabermos identificar as personagens e nem aprofunda muito aquelas que serão o centro da coisa.
Virgínia e Lígia. Nomes de uma mesma pessoa? É a mesma quando fora e ao retornar? É possível ser a mesma? É possível não ser?
Algumas perguntas norteiam o início da minha leitura de “Os tempos da fuga”, de Giovana Proença (Urutau, 2023). Entro no livro sem saber muito dele além de se tratar de uma narrativa “sobre” anistia. Ou melhor, com a anistia como pano de fundo para o retorno de uma personagem que havia fugido para a Argentina.
E durante a primeira parte inteira esse norteio funciona. Primeiro porque a personagem Virgínia/Lígia, com interioridade bem elaborada em questões como amor, família, e a própria questão da identidade, se aproxima de quem lê, se deixa ver em seus vacilos e infelicidade. A ideia de Lígia e Virgínia não só como uma dupla identidade de quem foge dos tempos sombrios da ditadura mas também como quem se questiona sobre o próprio desejo. Lígia não é alguém em fuga apenas porque é tempo para fugas, está em fuga porque se vê longe de Ângela, que a faz questionar o “porvir natural” das coisas.
A variação entre a primeira e a terceira pessoa da narrativa não ajuda muito, infelizmente. Tudo aquilo que o texto havia conquistado, como uma espécie de “pacto” nosso [leitores] com a personagem, o jogo de linguagem que a custo nos habituamos [é custoso porque apesar de ter uma narrativa sólida em mãos, a autora escolhe muitos lugares comuns que atravancam a história, como “nuances de chumbo” (p. 27), “piscada característica” (p. 31), “perdido na eternidade da perda” (58), só para citar alguns momentos em que o uso desses recursos prejudica o avanço da leitura]. Quando o texto assume de vez a terceira pessoa, os personagens se perdem, tornam-se todos uma massa meio homogênea e cinza, para ficarmos nessa cor reiterada. Num esforço crítico, penso que a autora possa ter escolhido este recurso para mostrar o como essas narrativas precisam de uma leitura aproximada [a contrapelo], o quanto as vidas afetadas pelo contexto da ditadura militar perdem sentido se olhadas de modo tão distanciado. O que funciona como recurso didático. Me pergunto se funciona como recurso ficcional.
‘Gosto do uso da linguagem em seus momentos mais trabalhados’, Paulo Zan sobre ‘Os tempos da fuga’, de Giovana Proença
Tenho lido muitas narrativas com a temática da ditadura militar. E notado que a maioria delas opta por trabalhar com a fragmentação, com histórias que são trabalhadas arduamente pela reconstituição da memória ou ações bruscamente interrompidas no seu fluxo por um evento. No livro de Proença, há também fragmentação, no entanto sua justificativa é de outra ordem, tem a ver com os papéis que a protagonista encena. Na primeira parte com Lígia/Virgínia e na segunda parte com Lígia/Virgínia/Vita (etc). Funciona muito essa reviravolta porque estamos nos perguntando como Lígia vai sair de Saudade, aquele povoado em que ela foi acolhida por uma família de descendentes italianos. Mas a aposta é muito alta.
Eu persisti na leitura porque também é pesquisa para mim, ou seja, pelo meu interesse no tema. A segunda parte, apresentando as tantas figuras e nomes que compõem o vilarejo e a família de agricultores, que é a justificativa para o final do livro, é muito custosa, pois não consegue dar uma nuance geral para sabermos identificar as personagens e nem aprofunda muito aquelas que serão o centro da coisa, de modo a parecer só existir para que haja a surpresa, o que para mim faz o livro perder força.
Gosto da personagem, em sua complexidade de composição, que é uma, duas, três… e tantas. Gosto do uso da linguagem em seus momentos mais trabalhados, quando as metáforas surgem naturalmente [mais no comecinho do livro mesmo]. Gosto, por fim, de ver uma estreia literária tão ambiciosa, e aguardo o que Giovana Proença trará, se vai apostar mais na investigação interior de personagens, como ela ensaiou aqui, ou se vai mergulhar no enredo e apostar no suspiro depois do árduo mergulho.
Leia também: E depois do movimento se volta à escolha, uma leitura de ‘Os grandes carnívoros’, de Adriana Lisboa.
Os tempos da fuga, de Giovana Proença
Editora Urutau, 2023
156 pp. R$ 58.