Portas, empatia e imperfeições

Entre roupas brancas, pulinhos sobre as ondas, previsões, rezas, reflexões, simpatias malucas ou qualquer outra maneira de mentalizar nossos sonhos, criamos uma certa atmosfera coletiva em torno das boas coisas.

Representação do deus grego romano Jano. Imagem: reprodução.

Na crônica intitulada “As duas faces de Jano”, escrita no início de 2024 para minha coluna no jornal Diário Popular, eu lembrava que, passadas as comemorações da virada, quase sempre fica, na ressaca do dia seguinte, aquela sensação de acordar entre taças e nossos próprios destroços. E, junto com a má digestão, a certeza de que algum anjo, em suas auspiciosas bençãos, protege os exagerados no copo e na mesa. Se o corpo padece muito com as consequências de tanta festa, nas primeiras semanas de janeiro, o espírito se vê envolvido em outra batalha inglória: consertar os presumidos estragos do ano anterior e projetar o que fazer, revisar ou transformar, nos próximos doze meses.

Vale lembrar, mais uma vez, que a palavra janeiro deriva do latim Ianuarius, nome do décimo-primeiro mês no calendário de Numa Pompílio. A designação foi uma homenagem a Jano, o deus romano representado com duas faces: uma voltada para trás, em alusão ao passado, e outra virada para frente, como símbolo do futuro. A divindade era ainda relacionada à ideia de colheitas, mudanças e transições. No Fórum Romano, o Templo de Jano tinha uma porta de cada lado. Conforme a tradição, elas eram fechadas em tempos de paz e abertas quando havia guerras. Como os romanos viviam envolvidos em suas batalhas de conquista, na maior parte do tempo, as portas do templo ficavam abertas. E, tragicamente, a persistir o costume, permaneceriam, ao longo dos séculos, num constante abre e fecha, até os dias de hoje. 

Tal qual o mito, ao inaugurarmos um novo ano, temos aquela tendência de olhar o que passou e projetar nossos desejos futuros, como se a passagem de calendário fosse de fato um portal de purificação ou transformação. Como se não continuássemos a ser quem somos, com nossos defeitos, nossas qualidades, bagagens e esperanças. De toda forma, entre roupas brancas, pulinhos sobre as ondas, previsões, rezas, reflexões, simpatias malucas ou qualquer outra maneira de mentalizar nossos sonhos, criamos uma certa atmosfera coletiva em torno das boas coisas. Estabelecemos, ainda que por pouco tempo, uma rede invisível de amor, paz, bons sentimentos, busca por um mundo mais justo e humano. Nos conectamos, uns aos outros, com uma dose maior de empatia e solidariedade. Com um propósito mais vívido de abandonar os umbrais do egoísmo e praticar o bem. Dessa catarse de emoções positivas fica a ideia de que, se não é possível mudar o passado ou consertar os seus estragos, seremos sempre capazes de aprender com nossas experiências e escrever, no novo tempo, uma história melhor e muito mais bonita. 

“Pessoalmente, acho libertadora essa consciência de minhas imperfeições”, Luciana Konradt

Se uma aura comum de bons pensamentos fortalece a fé na humanidade, nessa época, no plano pessoal, desejamos evoluir. Num processo de autoconhecimento, somos levados a questionar também nossas fraquezas, medos, e outras inseguranças. Pessoalmente, acho libertadora essa consciência de minhas imperfeições. Ao longo do ano, a eterna busca por um perfeccionismo inatingível é exaustiva. Buscar a melhor palavra, o gesto mais adequado, a atitude mais acertada, o constante autocontrole, o ângulo mais bonito para a foto, tudo enfim, quando vira uma obsessão perfeccionista, torna-se um fardo pesado demais. 

Acho libertador gritar, para mim mesma, como eu fiz através de um poema, escrito há poucos dias, que sou imperfeita. Feita de cacos, saudades e grandes cansaços. Atiçada na poesia dos abraços. Acesa na vontade dos versos. Sou imperfeita, feita de gestos, silêncios, amplitudes, pedaços. Mortalha dos sonhos desfeitos. Migalha de incompletos afetos. Sou imperfeita, feita de restos, sombras, luz, paz e tormentos. Redemoinho de poeira e ventos. Renda de vida tecida a retalhos. 

 Desejo que, apesar de imperfeitos, sejamos sempre a mais autêntica, dedicada e verdadeira versão de nós mesmos. Um excelente 2025!

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